INÁCIO ARAUJO CRÍTICO DA FOLHA
É um estranho filme, "Budapeste". Tudo nele sugere o fantástico, o onírico, exceto a sua mise-en-scène. Tudo gira em torno de José Costa, escritor anônimo, ghost-writer no dialeto editorial, que escreve livros para outros assinarem. A mulher de Costa é uma tola, que idolatra a fama -em particular a dos escritores. Vive em companhia de um escritor sem saber o que ele faz. A situação existe, aparentemente, no vazio: nada obriga Costa a ser ghost-writer, muito menos a esconder o fato da mulher. A ideia de que faz isso porque é apaixonado não se sustenta.Mas não são as explicações realistas que sustentam a trama. Costa vai para a Hungria, onde conhece uma garota e toma contato com a estátua do escritor desconhecido, autor de uma saga nacional que fez questão de permanecer anônimo. O fundamento do filme começa a se mostrar: Costa entende que as palavras não pertencem a ninguém, são patrimônio da língua, que existe algo de vergonhoso em quem se apossa delas para uso pessoal.Desde então sabemos o que significa Budapeste na construção do filme: não uma outra cidade, mas a própria alteridade, a diferença entre a existência real e seu duplo imaginário.Porque a vida real quer, praticamente exige, que ao lado do RG apresentemos um currículo, a lista de feitos capazes de distinguir alguém. Nesse outro mundo, sonhado, Budapeste, a existência é de certo modo incorpórea: lugar perfeito para perder a identidade. As palavras entram na vida como meros significantes, de maneira que Costa quase se envolve numa briga pela pronúncia da palavra andorinha. Esse aspecto fantástico se acentua em momentos como o improvável congresso de ghost-writers.Ora, o interessante de tudo é que a mise-en-scène de Walter Carvalho evita tratar o fantástico como tal. Budapeste não é apenas um som, é de fato a capital da Hungria, e bem concreta é Kriska (Gabriella Hámori), a bela garota que se dispõe a lhe ensinar o idioma "que até o diabo respeita". Os ecos de alegoria desaparecem sob esse tratamento, para, no entanto, retornarem de forma insidiosa, em momentos específicos. Exemplo: quando vemos a capa de um livro que Costa escreveu para outro assinar, ela é idêntica à de "Budapeste". Ou quando Chico Buarque em pessoa (autor do livro adaptado e, queira ou não, uma celebridade) surge pedindo autógrafo.Entrada duplamente significativa: primeiro, porque ele é o sujeito oculto da narrativa (quase como o poeta anônimo de Budapeste), segundo porque ali ele permite que essa dupla natureza se revele, como o mágico que expõe sua magia. Algo que, me parece, funciona bem (e salva o frágil happy end) graças ao fato de Carvalho optar pelo registro realista, de tal modo que a postulação do homem como ser quase infinito, cuja existência se desdobra em livros, palavras etc., acaba se encontrando perfeitamente com a imagem furtiva de alguém famoso (Chico Buarque), mas de quem podemos adivinhar ali as muitas vidas desconhecidas.
Avaliação: bom
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