quarta-feira, 8 de abril de 2009

A Baianidade e o Corpo

Angelina Bulcão Nascimento

A Bahia não poderia ficar imune aos modismos corporais facilmente verificáveis no cotidiano da nossa capital. Academias, lojas de produtos naturais e vigilantes do peso proliferam. O discurso dietético permeia as conversas, a orla é invadida pelas pessoas que fazem ‘cooper’. Tampouco as novas concepções de moral deixaram de atingir seus habitantes, alterando hábitos e atitudes.Entretanto, as mudanças das práticas corporais não podem ser indissociadas, na Bahia, de alguns aspectos incluídos na expressão ‘baianidade’. Esta alcunha teria se originado nos tempos do Brasil colônia (*) começou a circular e entrou no vocabulário popular e nos dicionários. Segundo Armindo Bião, em palestra realizada no Seminário de Cultura Contemporânea da Pós Graduação da FACOM, o imaginário brasileiro sobre a baianidade, expresso em piadas, programas de televisão e canções, representa os baianos como “um povo dengoso, faceiro, afetado, enfeitado, requebrado, jovial, feiticeiro, manhoso, birrento, que fala alto e cantando, que adora ver e ser visto, que se pega muito, que reconhece os lugares pelos cheiros de azeite, de sujeira e de maresia, que cultua: o aqui e o agora; o passado mas sobretudo o presente; a preguiça, a festa; as praias e as ladeiras; as pimentas (que atiçam o paladar), as figas e os balangandãs que enfeitam e protegem; a dança, a música e todos os espetáculos; além, de, naturalmente, todos os santos”. Acrescenta Jorge Amado, em seu livro “Bahia de Todos os Santos” , que o baiano faz da amabilidade uma verdadeira arte, é arguto, cordial e compreensivo, descansado e confiante, gosta de rir, conversar e de contar casos, o que reforça a imagem de descontração e afabilidade. O autor apresenta a Bahia como uma terra de contrastes e contradições: cidade negra por excelência, é também uma cidade portuguesa. O novo e o velho, a riqueza e a pobreza dividem espaços em quase todos os bairros. Embora muitas vezes reacionária e saudosista, é também revolucionária. As formas de modernidade conservam a essência do tradicional que dificultam uma definição precisa da nossa identidade. Entre a religião e a superstição, por exemplo, os limites inexistem. O catolicismo, também professado por uma população fiel aos cultos africanos, convive com o candomblé e lhe empresta os santos. Com sinaliza Amado, é possível identificar algo de pagão na religião dos baianos, que beira o sensual e nos dá a impressão de que as centenas de igrejas sejam um prolongamento dos terreiros. Tal como Jocasta, Iemanjá, deusa das águas, foi mãe e amante. Seus devotos têm por ela uma ternura que oscila do filial ao sensual. Ela é representada não apenas como uma sereia, mas como uma virgem, Nossa Senhora da Conceição, cuja festa é tão freqüentada quanto a festa de Iemanjá. O sincretismo também se traduz na mistura de cultos dos deuses Dioniso (desinibição, entusiasmo, espontaneidade) e Apolo (o fervor sóbrio, disciplinado e comedido). O corpo que se dobra de joelhos diante do deus cristão, também se rebola para honrar os orixás. Constatadas todas essas peculiaridades, podemos ver como, e se isso repercute nas práticas corporais contemporâneas na Bahia.Parece existir um ‘algo mais’ na corporalidade dos baianos, os quais criaram fama de preguiçosos, vagarosos, e até pouco tempo atrás não conjugavam o verbo ‘pular’ como os cariocas, e sim o verbo ‘brincar’ no carnaval.Os novos costumes encontraram na Bahia uma realidade diferente de outras capitais do país. Uma realidade em que as mentalidades sofreram influência da miscigenação de raças, mesmo que, em alguns segmentos sociais, esta influência tenha permanecido latente.As famílias de classes médias e altas, por exemplo, parecem ter sido refratárias durante muito tempo às influências africanas. Nestes segmentos sociais, a sensualidade era contida e reprimida, e o corpo sujeito a interdições de várias ordens. As distinções de formas de comer, sentar, andar, vestir, foram estimuladas como elementos de diferenciação, determinados pelos preconceitos raciais e econômicos. A renúncia ao prazer e ao conforto, exigida pela moral judaico-cristã, se expressava nos comportamentos de cama e mesa. Sabemos também que, até poucas décadas atrás, era nítida a distinção da prática religiosa entre as classes sociais. Os segmentos mais altos se limitavam a freqüentar os templos católicos, participar de procissões e novenas que, extrapolando seu objetivo religioso, permitiam a aproximação entre rapazes e garotas vigiadas, mas que não ia além dos olhares. As festas influenciadas pelos ritos afros, tais como lavagens de igrejas, com características carnavalescas, reuniam apenas a população dos bairros mais pobres, pois o candomblé, perseguido vários anos, era considerado religião de negros e sofria toda a carga de preconceitos. Nessas festas sacro-profanas, a música e a dança aproximavam os corpos, que se misturavam sem censura.Nos últimos anos, são inegáveis as mudanças verificadas nos estratos sociais elevados de Salvador, relativas aos princípios educacionais, que exigiam pudor e recato às mulheres. As danças mais sensuais, outrora restritas a camadas mais pobres da população, vítimas de discriminações de ordem racial e econômica, hoje são assumidas por todas as classes sociais e por ambos os sexos. ‘Garotas de família’, ‘patricinhas’ e ‘mauricinhos’, católicos e intelectuais aderem ao ritmo que lhes faz mexer com todas as partes do corpo, em movimentos que sugerem o ato sexual. Além dos fatores de mudanças acima citados, ressaltamos possíveis influências locais para transformações de comportamentos relativos ao corpo, saúde e moralidade:Antropólogos discorreram sobre a influência da chamada ‘cultura da praia’, referindo–se aos comportamentos e valores das populações que habitam cidades na orla marítima. Admitindo que os brasileiros ‘têm um culto da praia’, Thales de Azevedo (**), concluiu que esta, para muitos, determina formas de lazer e de relacionamento, tornando-se uma espécie de local obrigatório, uma válvula de escape para problemas e ansiedades. Além do mais, a cultura da praia vai de encontro à moral burguesa cristã, expressa no recato e na ‘pureza’, na contenção da sexualidade, na forma de lidar com o corpo, liberando a sensualidade. Amantes da areia, do sol e do sal e devotos de uma deusa que reina nos mares, os baianos estão, sem dúvida, sob efeito desta influência. Nos anos 70, tempos do ‘milagre brasileiro’, começou a ser difundida a imagem do ‘tropical feliz’ com o provável objetivo de neutralizar as desventuras dos habitantes do terceiro mundo. E foi nesse contexto que a Bahia se tornou a Meca dos foliões, dos amantes da dança e adoradores do sol. Aos poucos, houve adesão de intelectuais, artistas plásticos, professores, etnólogos, pesquisadores de diversas áreas, além da propaganda utilizada por oportunismos políticos e interesses turísticos. Um número cada vez maior de pessoas de classes altas foi atraído para os cultos e festas afros. O que, até então, fora rejeitado virou modismo. O espaço de lazer, antes restrito às praias (em horários delimitados), aos ‘footings’ no Farol da Barra, às matinês, ampliou-se para as ruas.É possível identificar uma tendência do baiano para o espetacular. Citando mais uma vez Bião, “na Bahia, o mundo é barroco e não é só um teatro, é muito mais, é um espetáculo total”. Salvador tornou-se um imenso palco onde, como se diz , ‘quem não está dançando, está ensaiando’. Esta frase contribui para a estereotipada imagem ‘oba-oba’ do baiano que troca o trabalho pela folia.Durante muito tempo, desconhecidas ou desprezadas pelas famílias tradicionais, a dança e música baianas contribuíram para derrubar algumas barreiras entre as classes, propiciando liberação de uma sensualidade proibida. O sucesso da música baiana ilustra o poder que tem a mídia. Que, para ela, abriu espaço, cada vez maior, nos programas de rádio e TV, ampliando as representações da Bahia como um lugar exuberante e sensual. A dança encontrou espaço ideal em uma terra onde o teatro, introduzido pelos jesuítas desde os tempos da colônia, com seus traços das formas espetaculares da cultura espanhola e italiana, seduziu seus habitantes. Os gestos eróticos, característicos de algumas danças africanas, foram recriados na Bahia, gerando estilos peculiares e permitindo catarses e soltura dos braços, pernas, quadris, nádegas, como foi o caso do lundu (dança de grande expressão nos palcos baianos do século XIX) a umbigada, a lambada, a timbalada, o ‘axé music’. Este último, assim como o pagode, apela para coreografias constantemente renovadas, estimulando o molejo do corpo e a sensualidade. Sensualidade que invade as relações quotidianas.A expansão das danças e músicas sensuais para todas as classes tem ou pode ter a ver com a ideologia dos lucros: percebendo um grande filão de consumo nas classes mais altas e anteriormente mais pudicas, a mídia passa a legitimar tais comportamentos com vistas a ganhar um grande e poderoso mercado consumidor. A música e dança baianas fazem com que o verão, o carnaval e a permissividade se prolonguem o ano inteiro originando um novo mercado econômico. Parece infinita a criatividade dos movimentos: ora se imita a galinha, o crocodilo, a tartaruga, a manivela, ora o gingado ganha outros apelidos sugestivos como ‘tortinho’, ‘deboche’, ‘fricote’. O carnaval recuperou seu caráter pagão e dionisíaco, abrindo as portas de um mundo isento do pecado. O mito do paraíso tropical corre o mundo, traz estrangeiros, enche os cofres públicos e particulares, democratiza a sensualidade, tenta driblar o mal-estar da civilização contemporânea. Sambar no asfalto, seguir o trio elétrico, amanhecer num bar, freqüentar festas de largo e lavagens, tornaram-se opções de lazer da elite. Essa mudança teve efeitos multiplicadores, e repercutiram intensamente na maneira de pessoas condicionadas a serem contidas soltarem seu corpo.Devemos perceber, porém, que essa adesão, por parte das elites, a certos costumes afros (antes apenas restritos a pobres e negros) não implica o apagamento das fronteiras e delimitações sociais. Os blocos carnavalescos, com seus cordões de isolamento e seguranças contratados, bem o ilustram. A separação de classes continua, portanto. O preconceito também racial persiste, embora muitas vezes disfarçado nos cuidados estéticos com o corpo. Na elite econômica, os narizes achatados são afinados por cirurgiões plásticos, os cabelos crespos são alisados por cabeleireiros competentes, e os quadris avantajados corrigidos com muita malhação e lipoescultura.Mesmo admitindo que a maioria esmagadora do povo baiano não escape da miscigenação, o verniz importado da cultura branca prevalece. Poderíamos, então, excluir as características da baianidade dos estratos mais altos da cidade de Salvador? A resposta a essa pergunta certamente exigiria análises mais amplas e cuidadosas. Mas não se pode negar que a influência negra tomou de assalto a maioria da população baiana, mesmo que não seja assumida diretamente. Pois é possível identificar um denominador comum entre as classes sociais, referente à descontração, espontaneidade, paixão pela música e dança, pelos espaços abertos, pela sensualidade que inspirou G. Gil ao compor: Toda menina baiana tem um jeito que Deus dá ...E se prestarmos atenção, podemos identificar em Salvador o sincretismo que também se aplica às práticas corporais, mistura da obsessão pela saúde que exige disciplina e renúncia aos prazeres, e o hedonismo expresso na satisfação dos apetites, sejam eles voltados para a comida e bebida que é pretexto para o encontros, sejam nas inesgotáveis formas de lazer que fazem da Bahia uma festa permanente. Apolo e Dioniso tomam assento ao lado dos orixás.

(*)A. Bião, op. cit., levanta a hipótese de ter havido uma proto-idéia de baianidade entre 1580 e 1640, quando Portugal era dominado pela Espanha. “Talvez date dessa época a criação de um adjetivo pátrio que viria a definir a identidade baiana, sobre o fato de constituir-se esse locus em singular nó da rede de relações culturais entre a Europa, as Américas, a África e Oriente. De fato, a baianidade parece soar bem em espanhol: la baianidad”.(**) O antropólogo prof. Thales de Azevedo em seu trabalho A Praia, Espaço de Sociabiliade. publicado pelo Centro de Estudos Baianos em 1988.

Um comentário:

  1. Lindo, Angelina.

    Rica a sua crônica sob todos os aspectos. Temos um coisa em comum: A Cidade do Salvador.

    Sua colaboração tem sido muito valiosa.

    Parabéns,

    Almir.

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