quarta-feira, 13 de abril de 2011

O dia da mentira

Maria Stella de Azevedo Santos*

No artigo passado falei sobre a guerra, o que me fez lembrar do seguinte pensamento: “Em tempos de guerra, a verdade é tão importante que precisa ser guarnecida por uma escolta de mentiras”. Infelizmente, não sei dizer quem foi o pensador desta pérola, mas creio que uma pessoa que é capaz de falar tamanha sabedoria, nunca se incomodaria que fizéssemos uso dela. Pensar é como puxar o fio de uma meada, um pensamento leva a outro, e foi assim que me lembrei do popular dia - Ilustração: Bruno Aziz - da mentira– Primeiro de Abril. As “pegadinhas” do dia Primeiro de Abril são engraçadas, mas existem mentiras desastrosas, que são ditas com a “impura” intenção de chocar, de denegrir a imagem do outro, de conflituar um grupo ou, simplesmente, de se autovalorizar. É preciso ter muito cuidado com o hábito de mentir, pois pode revelar um distúrbio psiquíco, chamado mitomania, para o qual se faz necessária muita comprensão por parte daquele que convive com quem possui este vício. Mentiras há, no entanto, que são inevitáveis, podemos até chamá-las de caridosas, por exemplo: uma pessoa que está com uma doença grave e nos pergunta se está muito decaída, é natural dizermos que não, com a intenção de amenizar o sofrimento dela. Se existe um dia consgrado à mentira, algum valor ela tem. Não há registro histórico garantido sobre como e porquê surgiu este dia. Dizem ser uma homenagem ao “bobo da corte”, uma personagem designada para distrair o rei e sua corte. Entretanto, o bobo da corte não mente, ao contrário, ele diz verdades em forma de piadas, que no Candomblé chamamos de sotaque. Toda corte, toda comunidade possui um bobo. Afinal, as verdades ditas por ele servem para que a autoridade máxima possa ser criticada e assim não se perca, por vaidade e orgulho, na utilização do poder que lhe foi conferido. Não podemos e não devemos falar tanto em mentira sem homenagear sua “irmã gêmea”, a verdade. Todavia, de que verdade devemos falar? Se são tantas! Exu, orixá que faz questão de nos mostrar, através de gracejos picantes, aquilo que na maioria das vezes não queremos ver, fez dois amigos compreenderem que a verdade, além de outros motivos, depende do ângulo pelo qual ela seja vista. Conta um conhecido mito que dois grandes amigos se vangloriavam de que ninguém seria capaz de separá-los. Exu, conhecedor das fragilidades das amizades, resolveu mostrar-lhes esta verdade universal. Usando seu famoso gorro, que tem um lado vermelho e outro preto, começou a pasar por entre os dois, a todo minuto,sem nem mesmo pedir licença. Incomodado com tal atitude, um dos amigos disse: – “Que homem mal educado, este de gorro vermelho”. O outro amigo retrucou: –”Mal educado, sim, mas o gorro dele é preto”. Foi o suficiente para a discussão começar. Um insistia que era vermelho e o outro teimava que era preto. A amizade acabou ali. E Exu saiu satisfeito, não por ter simplesmente criado uma intriga, mas porque através daquela intriga (que Ele sabia que o tempo de encarregaria de desfazer),Ele encontrou um meio de mostrar que muitos problemas são criados porque alguns homens ainda não entenderam que uma das cracterísticas da verdade é a de depender do ângulo pelo qual ela é vista. Mesmo sendo muitas as verdades, podemos dizer, de maneira redudante, que a verdadeira verdade é aquela que cada um crê. Religiosamente falando, a verdadeira crença é, então, aquela em que cada um acredita. Pois, assim como a verdade pode ser vista por diferentes ângulos, diferentes pontos de vista, são diversas as crenças religiosas, as quais divergem geralmente nos ritos, símbolos…mas nunca na essência. No Candomblé (pelo menos o que eu professo), a verdade é sempre estimulada e até mesmo exigida, mas nem por isso deixamos de “curtir” as mentiras saudáveis, usadas para nos fazer rir, até mesmo porque a alegria, consequentemente o riso, é uma das melhores formas de vivenciar o sagrado. Sendo assim, vamos brincar muito e fazer nosso País se encher de risos no dia Primeiro de Abril. Este é o meu desejo, já que sou Odé Kayode- Caçador que traz alegria.
Artigo originalmente publicado no jornal A Tarde www.atarde.com.br

*Maria Stella de Azevedo SAntos é Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá

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