Discutir a obra de um intelectual com as qualidades de Milton Santos exige um esforço coletivo e abrangente. Coletivo dada a diversidade de disciplinas que fazem uso de suas idéias. Abrangente graças aos diversos aspectos que ela abordou durante uma carreira que alcançou mais de 50 anos.
Falar da obra de um homem é falar do próprio homem. Por isso alguns dos artigos abordam passagens da vida de Milton Santos que marcaram os autores dos trabalhos. Nascido em Brotas de Macaúbas, no interior da Bahia, em 03 de maio de 1926, esse brasileiro ganhou o mundo por razões alheias a sua vontade. Porém, soube manter seus olhos nos arranjos sociais contemporâneos para construir uma teoria original que serve à interpretação do mundo que parte da geografia, do território, envolvendo os habitantes dos lugares.
Embora tivesse concluído o curso de Direito em 1948, Milton Santos ministrava aulas de Geografia no ensino médio na Bahia. Daí seu interesse pela disciplina que o lançou ao mundo das idéias e da reflexão política. Em 1958 obteve seu título de Doutor em Geografia, na Universidade de Strasbourg (França), passando a ensinar na Universidade Católica de Salvador e, depois, na Universidade Federal da Bahia, na década de 1960. Sua habilidade com as palavras e seu texto vigoroso rendeu-lhe a participação em jornais, como A Tarde, em Salvador na década de 1960 e, na de 1990, na Folha de S. Paulo, em São Paulo.
Homem de ação política, aceitou o convite para participar de governos no início da década de 1960 que culminou com sua prisão em 1964 por ocasião do golpe de estado implementado pelos militares ao Brasil. Foram 3 meses difíceis. Ao sair da prisão carregava consigo uma decisão: era preciso partir. O geógrafo ganhava o mundo. O começo de sua carreira internacional forçada ocorreu na França, onde trabalhou em diversas universidades, como as de Toulouse (1964-1967), de Bourdeaux (1967-1968) e de Paris (1968-1971). Durante esses anos realizou estudos sobre a geografia urbana dos países pobres e produziu vários livros como Dix essais sur les villes des pays-sous-dévelopés (1970), Les villes du Tiers Monde (1971) e L'espace partagé (1975, traduzido como O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana, em 1978). Este último marca a expressão de uma de suas idéias originais: a existência de dois circuitos da economia. O primeiro constituído pelas empresas, pelos bancos e firmas de seguros, ao qual chamava de rico. O segundo expressado pela economia informal, por meio do comércio ambulante e dos demais circuitos pobres da economia. Da França partiu para vários outros países, vivendo de maneira itinerante e como professor convidado.
Atuou em centros universitários, da América do Norte (Canadá, University of Toronto - 1972-1973; Estados Unidos, Massachusetts Institute of Technology, Cambridge - 1971-1972 e Columbia University, Nova York - 1976-1977), da América Latina (Peru, Universidad Politécnica de Lima - 1973; Venezuela, Universidad Central de Caracas - 1975-1976) e da África (Tanzânia, University of Dar-es-Salaam - 1974-1976). Seu retorno ao Brasil decorreu de um acontecimento especial ao geógrafo baiano: a gravidez de sua segunda esposa, Marie Hélene Santos. Milton queria que seu segundo filho, Rafael dos Santos, nascesse baiano, como seu primogênito, o economista Milton Santos Filho, que faleceu poucos anos antes que o pai.
Em 1978 estava de volta à vida universitária brasileira. Mas trazia na bagagem uma obra que marcou sobretudo aos geógrafos marxistas do país:Por uma geografia nova, que foi traduzida para vários idiomas em diversos países. Neste trabalho Milton Santos preconiza uma geografia voltada para as questões sociais. Entre 1978 e 1982 trabalhou como professor visitante na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - USP.
Atuou também como professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, onde permaneceu até 1983. Em 1983 ingressa em uma nova instituição de ensino e pesquisa: o Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, onde organizou congressos, ministrou aulas na graduação e na pós-graduação, pesquisou, produziu livros e formou alunos. A produção intensa desenvolvida no Departamento de Geografia da USP resultou na indicação para receber o prêmio Vautrin Lud, que é considerado o Prêmio Nobel no âmbito da Geografia.
Em 1994 Milton Santos foi o primeiro intelectual de um país pobre e o primeiro que não tinha o inglês como língua pátria agraciado com tal distinção. O prêmio internacional promoveu um redescobrimento de Milton Santos no Brasil. Passou a ser requisitado por órgãos de imprensa para entrevistas e depoimentos. Mas mantinha seu senso crítico a isso, afirmando que "um intelectual não pode falar todos os dias. É preciso tempo para amadurecer as idéias". Depois de 1994 sua vida foi marcada pelo reconhecimento de sua produção como geógrafo e intelectual crítico. Recebeu, entre outras premiações, o de Mérito Tecnológico (Sindicato de Engenheiros do Estado de São Paulo, em 1995), Personalidade do Ano (Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento do Rio de Janeiro, em 1997), 11ª Medalha Chico Mendes de Resistência (Grupo Tortura Nunca Mais, em 1999), O Brasileiro do Século (Isto é, 1999) Multicultural 2000 Estadão (O Estado de S. Paulo, em 2000). Fora do país, recebeu, entre outros prêmios, a Medalha de Mérito (Universidad de La Habana - Cuba, em 1994) e o prêmio UNESCO, categoria ciência(Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, em 2000).
Ampliou também sua série de honrarias universitárias como os títulos de Doutor Honoris Causa em universidades como a Université de Toulouse (1980), Universidad de Buenos Aires (1992), Universidad Complutense de Madrid (1994), Universidad de Barcelona (1996), entre tantas outras, incluindo mais de uma dezena no Brasil, onde ainda recebeu o título de professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em 1997. Conheci o professor Milton Santos em Paris, por ocasião de uma visita de estudos, em 1988. Naquele ano o professor também estava pesquisando na França e me recebeu em sua casa, sem nunca termos nos falado antes, a partir de em telefonema. De maneira direta indicou colegas franceses que me receberam com muita atenção, grande parte deles ex-alunos de Milton. A partir daí recebi seu renovado apoio em diversas ocasiões, como quando solicitei artigos para publicações da Associação dos Geógrafos Brasileiros - AGB, entidade que presidiu, ou quando aceitou vários convites para participar em eventos científicos ou ainda quando compareceu à homenagem que lhe foi concedida pelo Centro Interunidades de História da Ciência da USP, na qual participei diretamente, em 1996.
Diversos aspectos das idéias de Santos foram analisados nesta série de textos produzidos por geógrafos da Argentina, do Brasil e da Espanha. Marcos Bernardino, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, destaca um tema central na obra de Milton Santos: o cidadão, comentando inclusive o engajamento político do autor.
Ana Fani Carlos da USP, ressalta a articulação entre o local e o global promovida por Milton Santos em seus estudos sobre o urbano.
A Argentina Maria Martínez, da Universidad Nacional del Comahue, de Neuquén, expõe o impacto da presença do autor em seu país, comentando suas interpretações sobre a categoria território.
A professora da UFRJ Ina Castro discorre sobre a categoria região em sua dimensão teórica, tema que percorreu a obra de Milton em diversos livros. Maria Auxiliadora da Silva, da Universidade Federal da Bahia onde Milton também atuou como professor, descreve sua convivência com o geógrafo brasileiro destacando aspectos biográficos e da sua produção.
Denise Elias, que trabalha na Universidade Estadual do Ceará, apresenta uma classificação ampla da produção de Milton Santos, distinguindo 4 partes: estudos epistemológicos em geografia, análises sobre a cidade em países pobres, estudos sobre o território brasileiro e, por fim, sobre a globalização econômica.
Minha contribuição analisa a globalização, indicando a crítica do autor ao modelo proposto mas, também, sua proposta de uma globalização solidária.
O professor espanhol Horacio Capel da Universidad de Barcelona destaca que teve contato com a obra de Milton Santos quando preparava seus estudos sobre Murcia na década de 1960, envolvido em temas como aridez, rede urbana e países subdesenvolvidos. Ele encerra seu artigo apontando a necessidade em superar criticamente a obra de Milton Santos, adotando a irreverência do professor baiano na análise de sua obra. Esse é outro objetivo dessa coletânea.
* Professor do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário