quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Política, Cultura e Religiosidade

Ilustração de Aziz
Juca Ferreira*
Ainda está presente na memória de todos o tempo em que os centros litúrgicos conhecidos como “candomblés” precisavam de autorização policial para a celebração de suas divindades. As coisas mudaram. Hoje o Poder Público reverencia a glória do centenário de fundação do Axé Opô Afonjá, uma das três casas matrizes do culto ketu-nagô na Bahia. À frente dessa comunidade se encontra Stella de Oxóssi, uma das mais dignas sucessoras de Ana Eugênia dos Santos, a Mãe Aninha, fundadora do Axé.
Gostaria de destacar um ponto que me parece político e culturalmente importante para a democracia das crenças no Brasil. Mãe Aninha pertenceu também a irmandades religiosas, aparentemente –– externas ao culto dos orixás.
A Irmandade da Boa Morte, por exemplo, criada por africanos e seus descendentes na diáspora escrava é um exemplo de instituição ético-político-religiosa destinada a cultuar as representações do Bem e das regras tidas como indispensáveis para que se inscreva harmonicamente a morte na vida, para que a morte seja uma nuance controlada da vida. Por trás dela se encontra toda uma tradição cultural que considera a velhice o eixo simbólico do grupo social, conferindo ao idoso, um estatuto de prestígio. Os anos vividos não trazem discriminação social (como o velho na sociedade de consumo de hoje), mas autoridade e respeito. A morte, aí, não é natural, nem negativa, mas simbólica, algo que se partilha socialmente.
Como então explicar que um grupo reflexivo e religioso –– a comunidade dos cultores de orixás –– guiado por princípios opostos aos que se desenvolveram progressivamente na sociedade cristã do Ocidente possa ter existido sob forma de “irmandade” cristã?
A resposta encontra-se na idéia do “sincretismo estratégico”. Sincretismo implica troca de influências. O processo sincrético é cultural e normal na história de qualquer religião. Mas, na Bahia, quando os negros associavam alguns de seus orixás com santos da religião católica, não estavam apenas sincretizando, estavam respeitando (como faziam com outros deuses africanos) e seduzindo as diferenças graças à analogia de símbolos e funções. A aproximação dos contrários ocorria sem a dissolução das diferenças numa unidade sincrética.
Embora alguns digam que “Lugar de santo é na igreja; lugar de orixá é no terreiro”.
O sincretismo aí não implicava uma real transmutação ético-religiosa de valores, mas uma estratégia (política), destinada a proteger com as aparências institucionais da religião dominante a liturgia do escravo e seus descendentes.
Lamentavelmente isto não tem sido pensado como estratégia política, por mau entendimento do que seja política e por não se atribuir, preconceituosamente, consciência política a descendentes de escravos. Nunca se levou em conta que já entre eles pudesse existir uma elite intelectual negra.
Na realidade, as comunidades litúrgicas matriciais, aquelas que deram origem à profusão e à popularização dos cultos afro-brasileiros, foram resultado de uma aglutinação de lideranças, caracterizada pela participação fundacional de altos dignitários e sacerdotes do milenar culto aos orixás, trazidos ao Brasil na condição de escravos, em conseqüência das guerras interétnicas e das incursões guerreiras dos escravagistas no Continente africano. No tocante à cultura jeje-nagô-ketu, a experiência de vida na Bahia reflete exemplarmente ancestralidade e visão-de-mundo africanos.
Mãe Aninha, a fundadora do Axé Opô Afonjá, é um dos maiores exemplos na história nacional dessa política sem partidos que caracteriza a dimensão litúrgica dos descendentes de africanos no Brasil. Lidando com as diferenças (as irmandades religiosas, o convívio com intelectuais), ela deixa uma lição republicana para a atualidade: espiritualidade é, antes de tudo, independência do espírito frente aos dogmas e às verdades absolutas. Quando se é pleno de espírito, respeita-se a diferença, respeita-se a crença do outro. Isso é grandeza, isso é, junto com o axé guardado, um dos conteúdos preciosos do Axé Opô Afonjá. Que ele e os Orixás continuem a iluminar o mundo.
*Juca Ferreira é Ministro da Cultura
** Artigo publicado originalmente no dia 30.7.2010 em Opinião, do jornal A Tarde, é uma homenagem aos 100 anos do Ilê Axé Opô Afonjá.

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