Lourenço Mueller*
Os homens tem que encontrar formas, ou formatos – até prefiro
esta palavra em seu contexto digital – de repensar as grandes cidades, porque
se assim não for, elas vão sendo destruídas ou se autodestruirão
progressivamente. Há um movimento mundial nas metrópoles, chamado de gentrification, que remete às superável as
centralidades originais, seus centros antigos, sua gênese urbana: uma tendência
de retorno dos habitantes distanciados espacialmente ao coração de suas
cidades.
E na outra ponta do processo há uma inevitável necessidade
de crescimento, de alocação de população nessas cidades grandes. Quase não se
fala em planejamento: esta disciplina está cheirando a mofo ou virando utopia.
Um mínimo de atenção aos seus métodos ou conceitos poderia, pelo menos, salvar
as cidades da provável exclusão da memória representada pelos seus ícones
arquitetônicos e traçados urbanísticos de época.
Muitas dissertações de mestrado ou teses de doutorado têm
sido feitas sobre o rasgamento de Paris de Haussmann e Napoleão III no meio do
século 19 que, por razões mais imobiliárias que defensivas reconfigurou a “cidade
luz”, hoje tão elogiada capital das grandes avenidas e bulevares. Mas este
urbanismo de “cirurgia”, plagiado mundialmente, que destrói logradouros mudando
seu desenho de forma irrecuperável, nem sempre com a qualidade de traçado e
desenho haussmannianos, é esse um
urbanismo inteligente?
O pequeno grande livro que ora comentamos (Valadares, José.
Beabá da Bahia. Guia turístico. Salvador: Edufba, 2012) com a coordenação
editorial e prefácio de Fernando da Rocha Peres, e ilustrações de Carlos Thiré,
lançado no dia 24 pp no Museu de Arte da Bahia, em oportuna cerimônia promovida
por sua diretora, Sylvia Athaide, vem mostrar e demonstrar que cidades como
Salvador, donas de acervo arquitetônico e traçado que representam o cenário
real de épocas passadas e o comportamento distinto de seus habitantes, têm mais
a perder do que a ganhar com aquele tipo de intervenção. E mais, que a busca
obsessiva pelo turismo de massas pode ferir definitivamente uma cultura
insubstituível, macular uma atitude cordial característica e transformar
valores autênticos num pastiche televisivo típico da cariocada
redeglobalizante.
Esse livrinho prevê, com a antecedência de mais de meio
século e uma linguagem simples, baiana da gema, tendências da Salvador
contemporânea. Ele começa por resgatar o termo baiano com natural referência à
cidade da Bahia, que o pedantismo semântico apelidou de Soterópolis e fez com
que herdássemos o codinome abominável de so-te-ro-po-li-ta-no, que rima com
pelicano, uma ave bizarra com pro lapso de bico. Prefiro o neologismo poético Salvadolores, e seu derivado
crítico-toponímico salvadolorido para
seus sofridos e desrespeitados munícipes. Destaco de pronto o roteiro sugerido
ao turista, que logo desenha a morfologia do centro histórico mandando-o descer
e subir ladeiras e “... sentindo o cheiro de antiguidade que exala de cada
saguão. Ninguém o atacará, os cachorros não mordem...” O que morde hoje em dia
é o abandono, o descaso dos governos com o coração da cidade, apesar da
existência de um programa eficiente montado por dedicados técnicos. E comenta: “É
tão dramática a Bahia colonial noturna! Só assim é que se começa a gostar de
uma cidade que tem caráter e passado”.
Valladares escreveu, mais do que um guia turístico, uma
crônica de costumes, e fala de quase tudo – desde a história simplificada à
arquitetura de igrejas e conventos, palácios e solares, omitindo apenas a
arquitetura militar, as tão marcantes fortificações da cidade.
Até glosa com a percepção popular das estátuas: “Diz o povo,
numa tentativa de interpretar a atitude dos monumentos, que Castro Alves pede
uma esmola com o braço estendido, ao que lhe responde o barão do Rio Branco com
a mão no bolso que não tem trocado, enquanto o Cristo Redentor da Avenida
Oceânica lamenta a falta de caridade...” Que linda ingenuidade de outros
tempos, a mão no bolso de todos nós é o que há hoje em dia.
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* Arquiteto, Urbanista e Professor
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