Eric Nepomuceno*
De acordo com o santoral católico da Espanha, 23 de janeiro é o dia de São Ildefonso. Já o santoral brasileiro indica que é dia de São Clemente. Mas na ilha de Itaparica, o santoral do lugar, pagão e festeiro, deve indicar que é dia de São João Ubaldo, glória e arauto-padroeiro, defensor de suas justas maravilhas.
No ano de 1941, o dia 23 de janeiro caiu numa quinta-feira, tempo de lua minguante. Pouco antes das 5 da tarde, na casa de seu avô materno, o coronel Osório Pimentel, nasceu João Ubaldo, primeiro dos três filhos de Maria Felipa Osório Pimentel e Manoel Ribeiro.
Trinta anos depois, o João Ubaldo nascido na lua minguante surgiu com um romance crescente, Sargento Getúlio. Até ali, sua carreira de escritor mostrava a participação em duas antologias de contos e um romance discreto, Setembro Não Faz Sentido. Com Sargento Getúlio ele deu uma reviravolta na literatura de seu tempo. Antes, tinha feito de tudo um pouco: foi office-boy, depois repórter no Jornal da Bahia, editor-chefe de A Tribuna da Bahia, havia feito o curso de Direito na Universidade Federal da Bahia, editado revistas e jornais culturais, ao lado de Glauber Rocha, também na Bahia. E se o nome Bahia aparece cinco vezes nessas quatro linhas, é porque João Ubaldo Ribeiro é um cidadão do mundo que, por mais mundo que conheça, por mais vida que tenha vivido, exala Bahia, Brasil e povo brasileiro enquanto respira.
Seus livros estão publicados em mais de uma dúzia de idiomas, e dos nossos autores é um dos mais conhecidos, estudados e prestigiados mundo afora. Viva o Povo Brasileiro, um catatau de quase 700 páginas, vendeu mais de 120 mil exemplares na Alemanha. Pois tudo isso - e muito mais, pois seria justo mencionar os prêmios todos, as glórias todas, os reconhecimentos, as amizades com pilares das artes e das letras - se oculta dentro da figura de óculos de lentes grossas e silhueta rechonchuda, sempre de bermudas, sandálias e camisa folgada, de mangas curtas, que perambula pelas ruas do Leblon, no Rio de Janeiro. Cumprimenta as velhinhas do bairro, é saudado com afeto e entusiasmo por jornaleiros e garçons, reúne-se em botecos com seus amigos e camaradas do dia a dia (nenhum deles literato, nenhum deles celebridade). Todos sabem que ele é conhecido, cronista lido e influente, que é um escritor de peso. Mas talvez não saibam de sua erudição fenomenal, de sua dedicação de monge ao ofício da palavra escrita, de sua obsessão pelos personagens que cria e recria. Que, muito mais que glória de Itaparica e do Leblon, é glória de todos nós, seus contemporâneos.
Durante anos e anos frequentamos a mesa que reunia aos sábados, num mercado do Leblon, um grupo de amigos (alguns bastante conhecidos, é verdade; mas naquele boteco éramos todos iguais, dispostos a não deixar que se extinguisse em nós a alegria). Jamais esquecerei as disputas entre João Ubaldo e Tom Jobim, leitor ávido, para ver quem sabia mais versos de T. S. Elliot. Ubaldo ganhava sempre. A pronúncia perfeita, o vozeirão empostado, a emoção em cada verso, a memória prodigiosa - tudo nele era formidável. Principalmente a perfeição com que cumpria nosso propósito - o humor: certo sábado, confessou que quase todos os versos que ele recordava e Tom não conhecia tinham sido inventados na hora.
Para quem é obsessivamente disciplinado no ofício solitário da escrita, para quem domina pelo direito e pelo avesso o idioma de Elliot, aquela brincadeira era apenas isso, uma brincadeira. Pois eu confesso que me contentaria, e para sempre, em ser capaz de inventar, no calor de uma disputa de bar, versos de Elliot.
Não precisaria de mais nada para me sentir um craque. Porque criar enredos e personagens como ele, bem, isso eu sei que é impossível. Não, não: eu me contentaria em ser João Ubaldo inventando Elliot. E, aliás, inventando que está fazendo 70 anos. Porque quem tem o humor, quem tem a imaginação prodigiosa desse meu amigo, não faz aniversário: flutua.
De acordo com o santoral católico da Espanha, 23 de janeiro é o dia de São Ildefonso. Já o santoral brasileiro indica que é dia de São Clemente. Mas na ilha de Itaparica, o santoral do lugar, pagão e festeiro, deve indicar que é dia de São João Ubaldo, glória e arauto-padroeiro, defensor de suas justas maravilhas.
No ano de 1941, o dia 23 de janeiro caiu numa quinta-feira, tempo de lua minguante. Pouco antes das 5 da tarde, na casa de seu avô materno, o coronel Osório Pimentel, nasceu João Ubaldo, primeiro dos três filhos de Maria Felipa Osório Pimentel e Manoel Ribeiro.
Trinta anos depois, o João Ubaldo nascido na lua minguante surgiu com um romance crescente, Sargento Getúlio. Até ali, sua carreira de escritor mostrava a participação em duas antologias de contos e um romance discreto, Setembro Não Faz Sentido. Com Sargento Getúlio ele deu uma reviravolta na literatura de seu tempo. Antes, tinha feito de tudo um pouco: foi office-boy, depois repórter no Jornal da Bahia, editor-chefe de A Tribuna da Bahia, havia feito o curso de Direito na Universidade Federal da Bahia, editado revistas e jornais culturais, ao lado de Glauber Rocha, também na Bahia. E se o nome Bahia aparece cinco vezes nessas quatro linhas, é porque João Ubaldo Ribeiro é um cidadão do mundo que, por mais mundo que conheça, por mais vida que tenha vivido, exala Bahia, Brasil e povo brasileiro enquanto respira.
Seus livros estão publicados em mais de uma dúzia de idiomas, e dos nossos autores é um dos mais conhecidos, estudados e prestigiados mundo afora. Viva o Povo Brasileiro, um catatau de quase 700 páginas, vendeu mais de 120 mil exemplares na Alemanha. Pois tudo isso - e muito mais, pois seria justo mencionar os prêmios todos, as glórias todas, os reconhecimentos, as amizades com pilares das artes e das letras - se oculta dentro da figura de óculos de lentes grossas e silhueta rechonchuda, sempre de bermudas, sandálias e camisa folgada, de mangas curtas, que perambula pelas ruas do Leblon, no Rio de Janeiro. Cumprimenta as velhinhas do bairro, é saudado com afeto e entusiasmo por jornaleiros e garçons, reúne-se em botecos com seus amigos e camaradas do dia a dia (nenhum deles literato, nenhum deles celebridade). Todos sabem que ele é conhecido, cronista lido e influente, que é um escritor de peso. Mas talvez não saibam de sua erudição fenomenal, de sua dedicação de monge ao ofício da palavra escrita, de sua obsessão pelos personagens que cria e recria. Que, muito mais que glória de Itaparica e do Leblon, é glória de todos nós, seus contemporâneos.
Durante anos e anos frequentamos a mesa que reunia aos sábados, num mercado do Leblon, um grupo de amigos (alguns bastante conhecidos, é verdade; mas naquele boteco éramos todos iguais, dispostos a não deixar que se extinguisse em nós a alegria). Jamais esquecerei as disputas entre João Ubaldo e Tom Jobim, leitor ávido, para ver quem sabia mais versos de T. S. Elliot. Ubaldo ganhava sempre. A pronúncia perfeita, o vozeirão empostado, a emoção em cada verso, a memória prodigiosa - tudo nele era formidável. Principalmente a perfeição com que cumpria nosso propósito - o humor: certo sábado, confessou que quase todos os versos que ele recordava e Tom não conhecia tinham sido inventados na hora.
Para quem é obsessivamente disciplinado no ofício solitário da escrita, para quem domina pelo direito e pelo avesso o idioma de Elliot, aquela brincadeira era apenas isso, uma brincadeira. Pois eu confesso que me contentaria, e para sempre, em ser capaz de inventar, no calor de uma disputa de bar, versos de Elliot.
Não precisaria de mais nada para me sentir um craque. Porque criar enredos e personagens como ele, bem, isso eu sei que é impossível. Não, não: eu me contentaria em ser João Ubaldo inventando Elliot. E, aliás, inventando que está fazendo 70 anos. Porque quem tem o humor, quem tem a imaginação prodigiosa desse meu amigo, não faz aniversário: flutua.
* Jornalista, escritor e tradutor
**Artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo
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