Gil Vicente Tavares*
Havia acabado de escrever um texto sobre a “síndrome de Peter Pan” que acomete Salvador, essa vontade de não crescer, e caio no carnaval da cidade.
O carnaval de Salvador é um simulacro, em sete dias, do que é a cidade o resto do ano. Uma soma da inoperância e falta de planejamento dos poderes públicos, um domínio voraz de empresários que fazem o que bem entendem e de forma tosca e a selvageria de um povo que, há muito, parece ter perdido a delicadeza.
Peço, então, que o que se lê aqui sobre o carnaval sirva, guardada suas proporções e alvos, como uma metonímia dos outros 358 dias de civilização e barbárie.
Salvador tem que profissionalizar seu carnaval. E o que seria isso?
Há anos vamos empurrando nossa maior festa sem planejamento, organização e planejamento urbano para o real funcionamento da folia. Como já foi estudado em pesquisas, o carnaval de Salvador é mais pra turista que pra soteropolitanos, visto de mais de 60% deles preferem ficar em casa, outros tantos viajam e a cidade se infesta de estrangeiros, sulistas, mineiros e por aí vai.
Primeiramente, tem-se que ter uma organização pensada, que vá da ordem dos desfiles a cumprimento de horários e tempo de percurso. Passando pela escolha das atrações dos trios independentes e seus artistas, bem como apoios a blocos afros e adjacências.
Não dá pra deixar um bloco da beleza do Ilê Aiyê desfilar na avenida de madrugada, assim como não dá pra se jogar dinheiro fora com afoxés e blocos afro que têm meia dúzia de três ou quatro pessoas que conseguem patrocínios por que “mantêm a tradição das nossas raízes blablablá”. Não dá pra deixar desfilar um trio independente, como eu vi alguns, sem ninguém na pipoca, enquanto o projeto Três na Folia, o Baiana System, artistas da cena local ficam à mercê de convites e xous no Pelourinho; que acho bacana, mas não é carnaval de rua, atrás de um trio, e mesmo assim muitos ficam de fora. Seria preciso repensar a sequência das apresentações para intercalar um bloco com um trio independente, e assim contemplar todos, ou algo do gênero. Pensar o circuito, sua sequência de atrações, um planejamento justo e por mérito.
Segundamente, deveria haver um acordo entre os empresários dos camarotes e os poderes públicos. Tudo bem que o camarote é aquele esquema de “todo mundo na praça e muita gente sem graça no salão”. Ou, como na canção “Carolina”, de Chico, pessoas que ficam vendo o tempo passar na janela. Música eletrônica, animação zero, ou, quando há, algo meio fora do que é o carnaval. Passei por vários, pulando, e vi um monte de gente debruçada com cara de nada, mas deixa pra lá. Os camarotes existem e não dá pra ser bobo de ficar com um discurso “abaixo os camarotes”. 60 demais. O que se precisa é organizar, dialogar, fazer troca de benefícios com a cidade.
Nada contra os camarotes que ocupam casarões, andares de prédios e de bares. Mas as megaconstruções que atrapalham, espremem e enfeiam o circuito mereciam ser limitadas urbanisticamente, e construídas num prazo mínimo, sob pena de multa. A cidade parar um mês antes pra construção de mondrongos que beneficiarão o capital privado é algo louco, absurdo. Se fosse ao menos para obras públicas, que beneficiariam a população com um todo... Enfim, fazer o que? Propor aos camarotes que em seus andares térreos fossem construídos postos de saúde, banheiros, propostas de utilidade pública. Por que não a instalação de câmeras no circuito, que poderiam ficar ali para futuramente ajudar na segurança das ruas? O simples pagamento de imposto não serve, sabemos que é um poço sem fundo e, entre sonegação, fiscal corrupto e políticos que desviam verbas, sabemos que pagar imposto é um benefício que garante, no máximo, o exorbitante salário que os políticos ganham para, em sua maioria, fazer apenas pelo seu bolso e partido, e nada pro povo.
Terceiramente, quero falar das empresas patrocinadoras e os governos estadual e municipal. O grande nó. A tragédia.
O carnaval de Salvador precisa de organização. Pensada. Planejada. Precisa que as transversais dos circuitos, os chamados “becos”, sejam áreas de livre circulação, proibindo isopores, foliões parados para observar a folia. E com banheiros públicos dos dois lados. Banheiros públicos mais viáveis, com canaletas e uma porta única, para complementar com os químicos, para necessidades maiores e para as mulheres. E banheiros do Itaú, da Schin, da Credicard. Ao invés de balões, leques e aqueles porretes chatíssimos infláveis, que os babacas usaram nesse carnaval de forma insistente e desagradável, essas empresas tinham que patrocinar banheiros públicos. As cervejarias deveriam criar espaços para venda de cerveja, e receptáculos para se jogar as latinhas. Por que não imaginar uma festa com pessoas jogando lixo no lixo? Precisa a barbárie de mijar e jogar latinhas no chão?
O lucro é muito grande. Mas só se pensa no lucro, nunca nos benefícios que poderíamos ter. Quando acontece uma copa do mundo, uma olimpíada, a cidade sempre fica com estruturas, construções e resoluções urbanas como herança, há sempre benefícios para a cidade. Com nosso carnaval, que é anual, teríamos que ter o mesmo. Imaginem 10 anos de carnaval com benesses para a cidade como banheiros públicos, estruturas de segurança, planejamento da funcionalidade dos serviços?
Em algumas capitais, para se pegar um táxi comum, tem-se que se dirigir a um guichê, onde o preço por local é tabelado, e de lá a pessoa é encaminhada ao primeiro da fila de táxis. Impossível fazer o mesmo em pontos estratégicos da folia? Não, falta vontade política. Falta se pensar a segurança do carnaval com prevenção, com postos de observação, policiais infiltrados em blocos, atenção a grupos que, claramente, estão à procura de confusão. E não aqueles brucutus empurrando a gente com cassetetes e socando e estapeando as pessoas (algo que às vezes é inevitável, não sejamos politicamente corretos para ter pena de vagabundo excessivamente, também, até a hora que acontece com a gente).
Bem, eu poderia falar do quanto as cordas de bloco, a segregação provoca a violência, visto que saí em trios sem corda e não vi confusão. Poderia esculhambar mais com camarotes. Falar da iniciativa de Saulo que deveria ser obrigação de todos os artistas, sair um dia sem cordas pro povo como contrapartida por usar a via pública para encher as burras de dinheiro. Poderia falar do babaca que, em pleno século XX, ainda vê cor e opção sexual como questões que diferenciam os homens, na cena deplorável com Márcio Vitor. Mas isso muita gente já falou demais; o que acho importante e fundamental.
Eu quis, aqui, apenas sugerir e provocar coisas que fogem ao meu controle, pois sou um ignorante quase completo em termos de organização, produção e urbanismo. Mas que ao menos as asneiras que eu falei possam provocar alguém a repensar nosso carnaval de forma profissional. Mesmo com tudo isso, vi muitos se manifestarem dizendo que esse foi o melhor carnaval de suas vidas. Eu também adorei. Mas é preciso profissionalizar nosso carnaval, vê-lo como um investimento para a cidade, para o turismo, para a cultura. Não deixar ele ser essa bagunça vergonhosa que foi esse ano. Essa porcaria institucionalizada. Essa desorganização que muitos querem que seja nossa forma de ser.
Aliado a tudo isso, ainda há o comportamento cada vez mais bárbaro, bruto, deselegante, maleducado, porco e desleixado que é o espetáculo dado pela nossa população de todos os níveis sociais. Não podemos fazer vista grossa a esse lamentável fato de que não colaboramos em nada com o bem geral. Como disse no texto anterior, queremos sempre culpar governos, empresas, mas macaco não olha o próprio rabo, e precisamos tomar consciência e sermos mais delicados e gentis com os outros. Gentileza gera...
Bem, o carnaval é um investimento. Onde, por enquanto, as empresas investem em si; os governos disfarçam ações; a elite se isola em cordas e campos de concentração; e o folião se mascara de alegre e deixa a banda passar...
E, com licença, que depois da maravilha que foi Moraes Moreira, Armandinho e seus irmãos e mais alguns, vou ali ouvir Saint-Saëns, se é que me entendem...
* Dramaturgo, ator e escritor
Havia acabado de escrever um texto sobre a “síndrome de Peter Pan” que acomete Salvador, essa vontade de não crescer, e caio no carnaval da cidade.
O carnaval de Salvador é um simulacro, em sete dias, do que é a cidade o resto do ano. Uma soma da inoperância e falta de planejamento dos poderes públicos, um domínio voraz de empresários que fazem o que bem entendem e de forma tosca e a selvageria de um povo que, há muito, parece ter perdido a delicadeza.
Peço, então, que o que se lê aqui sobre o carnaval sirva, guardada suas proporções e alvos, como uma metonímia dos outros 358 dias de civilização e barbárie.
Salvador tem que profissionalizar seu carnaval. E o que seria isso?
Há anos vamos empurrando nossa maior festa sem planejamento, organização e planejamento urbano para o real funcionamento da folia. Como já foi estudado em pesquisas, o carnaval de Salvador é mais pra turista que pra soteropolitanos, visto de mais de 60% deles preferem ficar em casa, outros tantos viajam e a cidade se infesta de estrangeiros, sulistas, mineiros e por aí vai.
Primeiramente, tem-se que ter uma organização pensada, que vá da ordem dos desfiles a cumprimento de horários e tempo de percurso. Passando pela escolha das atrações dos trios independentes e seus artistas, bem como apoios a blocos afros e adjacências.
Não dá pra deixar um bloco da beleza do Ilê Aiyê desfilar na avenida de madrugada, assim como não dá pra se jogar dinheiro fora com afoxés e blocos afro que têm meia dúzia de três ou quatro pessoas que conseguem patrocínios por que “mantêm a tradição das nossas raízes blablablá”. Não dá pra deixar desfilar um trio independente, como eu vi alguns, sem ninguém na pipoca, enquanto o projeto Três na Folia, o Baiana System, artistas da cena local ficam à mercê de convites e xous no Pelourinho; que acho bacana, mas não é carnaval de rua, atrás de um trio, e mesmo assim muitos ficam de fora. Seria preciso repensar a sequência das apresentações para intercalar um bloco com um trio independente, e assim contemplar todos, ou algo do gênero. Pensar o circuito, sua sequência de atrações, um planejamento justo e por mérito.
Segundamente, deveria haver um acordo entre os empresários dos camarotes e os poderes públicos. Tudo bem que o camarote é aquele esquema de “todo mundo na praça e muita gente sem graça no salão”. Ou, como na canção “Carolina”, de Chico, pessoas que ficam vendo o tempo passar na janela. Música eletrônica, animação zero, ou, quando há, algo meio fora do que é o carnaval. Passei por vários, pulando, e vi um monte de gente debruçada com cara de nada, mas deixa pra lá. Os camarotes existem e não dá pra ser bobo de ficar com um discurso “abaixo os camarotes”. 60 demais. O que se precisa é organizar, dialogar, fazer troca de benefícios com a cidade.
Nada contra os camarotes que ocupam casarões, andares de prédios e de bares. Mas as megaconstruções que atrapalham, espremem e enfeiam o circuito mereciam ser limitadas urbanisticamente, e construídas num prazo mínimo, sob pena de multa. A cidade parar um mês antes pra construção de mondrongos que beneficiarão o capital privado é algo louco, absurdo. Se fosse ao menos para obras públicas, que beneficiariam a população com um todo... Enfim, fazer o que? Propor aos camarotes que em seus andares térreos fossem construídos postos de saúde, banheiros, propostas de utilidade pública. Por que não a instalação de câmeras no circuito, que poderiam ficar ali para futuramente ajudar na segurança das ruas? O simples pagamento de imposto não serve, sabemos que é um poço sem fundo e, entre sonegação, fiscal corrupto e políticos que desviam verbas, sabemos que pagar imposto é um benefício que garante, no máximo, o exorbitante salário que os políticos ganham para, em sua maioria, fazer apenas pelo seu bolso e partido, e nada pro povo.
Terceiramente, quero falar das empresas patrocinadoras e os governos estadual e municipal. O grande nó. A tragédia.
O carnaval de Salvador precisa de organização. Pensada. Planejada. Precisa que as transversais dos circuitos, os chamados “becos”, sejam áreas de livre circulação, proibindo isopores, foliões parados para observar a folia. E com banheiros públicos dos dois lados. Banheiros públicos mais viáveis, com canaletas e uma porta única, para complementar com os químicos, para necessidades maiores e para as mulheres. E banheiros do Itaú, da Schin, da Credicard. Ao invés de balões, leques e aqueles porretes chatíssimos infláveis, que os babacas usaram nesse carnaval de forma insistente e desagradável, essas empresas tinham que patrocinar banheiros públicos. As cervejarias deveriam criar espaços para venda de cerveja, e receptáculos para se jogar as latinhas. Por que não imaginar uma festa com pessoas jogando lixo no lixo? Precisa a barbárie de mijar e jogar latinhas no chão?
O lucro é muito grande. Mas só se pensa no lucro, nunca nos benefícios que poderíamos ter. Quando acontece uma copa do mundo, uma olimpíada, a cidade sempre fica com estruturas, construções e resoluções urbanas como herança, há sempre benefícios para a cidade. Com nosso carnaval, que é anual, teríamos que ter o mesmo. Imaginem 10 anos de carnaval com benesses para a cidade como banheiros públicos, estruturas de segurança, planejamento da funcionalidade dos serviços?
Em algumas capitais, para se pegar um táxi comum, tem-se que se dirigir a um guichê, onde o preço por local é tabelado, e de lá a pessoa é encaminhada ao primeiro da fila de táxis. Impossível fazer o mesmo em pontos estratégicos da folia? Não, falta vontade política. Falta se pensar a segurança do carnaval com prevenção, com postos de observação, policiais infiltrados em blocos, atenção a grupos que, claramente, estão à procura de confusão. E não aqueles brucutus empurrando a gente com cassetetes e socando e estapeando as pessoas (algo que às vezes é inevitável, não sejamos politicamente corretos para ter pena de vagabundo excessivamente, também, até a hora que acontece com a gente).
Bem, eu poderia falar do quanto as cordas de bloco, a segregação provoca a violência, visto que saí em trios sem corda e não vi confusão. Poderia esculhambar mais com camarotes. Falar da iniciativa de Saulo que deveria ser obrigação de todos os artistas, sair um dia sem cordas pro povo como contrapartida por usar a via pública para encher as burras de dinheiro. Poderia falar do babaca que, em pleno século XX, ainda vê cor e opção sexual como questões que diferenciam os homens, na cena deplorável com Márcio Vitor. Mas isso muita gente já falou demais; o que acho importante e fundamental.
Eu quis, aqui, apenas sugerir e provocar coisas que fogem ao meu controle, pois sou um ignorante quase completo em termos de organização, produção e urbanismo. Mas que ao menos as asneiras que eu falei possam provocar alguém a repensar nosso carnaval de forma profissional. Mesmo com tudo isso, vi muitos se manifestarem dizendo que esse foi o melhor carnaval de suas vidas. Eu também adorei. Mas é preciso profissionalizar nosso carnaval, vê-lo como um investimento para a cidade, para o turismo, para a cultura. Não deixar ele ser essa bagunça vergonhosa que foi esse ano. Essa porcaria institucionalizada. Essa desorganização que muitos querem que seja nossa forma de ser.
Aliado a tudo isso, ainda há o comportamento cada vez mais bárbaro, bruto, deselegante, maleducado, porco e desleixado que é o espetáculo dado pela nossa população de todos os níveis sociais. Não podemos fazer vista grossa a esse lamentável fato de que não colaboramos em nada com o bem geral. Como disse no texto anterior, queremos sempre culpar governos, empresas, mas macaco não olha o próprio rabo, e precisamos tomar consciência e sermos mais delicados e gentis com os outros. Gentileza gera...
Bem, o carnaval é um investimento. Onde, por enquanto, as empresas investem em si; os governos disfarçam ações; a elite se isola em cordas e campos de concentração; e o folião se mascara de alegre e deixa a banda passar...
E, com licença, que depois da maravilha que foi Moraes Moreira, Armandinho e seus irmãos e mais alguns, vou ali ouvir Saint-Saëns, se é que me entendem...
* Dramaturgo, ator e escritor
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