Gil Vicente Tavares*
Salvador elegeu um novo prefeito, e o pouco que ele fizer será o suficiente e necessário para o soteropolitano comum. Se em quatro anos a cidade estiver bem asfaltada, sem engarrafamentos crônicos e com barracas de praia e uma orla mais bonita, ele será reeleito como um excelente prefeito, avaliado como um dos melhores, quiçá o melhor do país.
Somos espremidos culturalmente entre duas grandes festas, o São João e o Carnaval. Os meses que antecedem essas festas são de preparativos para essas efemérides. Assim, resume-se a cultura do soteropolitano médio. Para ele, é suficiente ter uma cidade sem buracos e engarrafamentos, uma orla bonita e ruas sem lixo, uma reforma de praça aqui e acolá e a sensação de estar seguro. Com isso, ele poderá circular do trabalho pra casa, e da casa pro Shopping Center, do trabalho pro Shopping Center, ou de um dos três para a praia. E assim o soteropolitano será feliz.
Esperar isso de um prefeito, atualmente, é muito, tenho que admitir. Confesso até que, pra mim, se a gestão de ACM Neto resolver essas questões de forma competente, honesta e pensando em qualidade e durabilidade, bem como projetando uma cidade que funcione e ande nos trilhos por muitos anos, tudo isso seria sensacional.
Contudo, há um problema grave. A falta de ambição, de crescimento subjetivo, de sensibilização e qualificação intelectual e simbólica da cidade é algo preocupante e começa pelos políticos que a administram.
ACM Neto é de uma geração de ignorantes e limitados culturalmente; a minha geração. Herdou da geração passada, que em boa parte conduz os caminhos do entretenimento na cidade, uma visão medíocre da cultura, e vai governar para um povo que caminha na mesma direção.
Escrevi certa vez sobre a relação do trânsito e da cultura de Salvador, e Roberto DaMatta publicou um livro que não li, mas acompanhei resenhas e entrevistas, e caminha nesse sentido, intitulado Fé em Deus e Pé na Tábua. Nossa cidade chegou a um nível de brutalidade que se traduz na forma agressiva e egoísta de se comportar em ônibus e automóveis. Na forma como se ouve músicas de péssima qualidade (não vou entrar naquela de defender a atual qualidade da nossa música para parecer bonzinho, plural e compreensivo com a estupidização dos gostos), seja sem fone nos transportes públicos, seja no volume altíssimo dos automóveis particulares. Paramos o carro em locais proibidos, buzinamos sem educação, não damos passagem, ultrapassamos pelo acostamento, enfim, os problemas que nosso futuro prefeito pode resolver vão fortalecer a ideia individualista de transitar pela cidade de forma tranquila para, em contraposição a ela, poder chegar ao shopping ou ao ensaio de alguma banda dessas que vão surgindo e se metamorfoseando pior que vírus da gripe.
Nosso problema passa pela cultura. Pela sensibilização de um povo, pela valorização de nossa criação e fortalecimento do que mais atrai turistas para a cidade, que é nossa arte. Por mais belo que seja, pergunte a um turista se a motivação dele em vir pra Salvador é o Farol da Barra ou nossa música. O problema é que o turista conhece muito pouco o que produzimos fora do carnaval e São João, que é o que é vendido pra fora, mesmo pela Saltur e Bahiatursa, enfim, o Estado alimenta poucos empresários e artistas que se locupletam das benesses públicas para enriquecer e transformar Salvador num puteiro e cervejódromo a céu aberto.
Quem ganha com carnaval e São João? Boa parte das pessoas que conheço deixa de trabalhar durante essas festas, deixa de ganhar dinheiro, e somente gasta, ficando aqui e consumindo a produção de poucos, ou viajando e torrando suas economias, para ver-se livre do caos que se instala na cidade.
Eis a primeira parte do problema: vivemos uma cultura da inércia. Qualquer cidade do mundo que se preze tem um teatro municipal. Boa parte das vezes, com um balé municipal, às vezes com uma orquestra. A prefeitura é a maior investidora e potencializa a diversidade, investe em qualidade, em visibilidade e fortalecimento da cultura, através das artes profissionais e das artes amadoras, populares. Mas aqui, não se faz nada e a população também não se incomoda, não sente falta, quando muito viaja pra fora e volta louvando a civilização e a cultura como se fossem coisas incapazes de acontecer aqui.
Essa cultura da inércia também é evidenciada na questão reativa das pessoas. Enquanto está tudo parado, nada acontece, as pessoas também ficam paradas, nada é dito. Basta alguém agir para uma turba reagir. Se alguém se pronuncia para criticar algo, a primeira reação, antes mesmo de tentar corroborar a crítica, melhorá-la ou entendê-la, é a de criticar a crítica. São os abutres e rêmoras, que jamais pensam, formam um pensamento relevante, mas ao primeiro sinal de algum pensamento alheio reagem com críticas, impropérios, e o problema fica circular e autofágico, visto que os que deveriam ser criticados ficam lá de cima vendo os idiotas criticando-se e engalfinhando-se em picuinhas e disputas imbecis.
A gestão passada da cultura, no Estado, foi severamente criticada pela classe teatral – e coloco-me entre estes – e disso surgiu o movimento Cultura na UTI, pessoas influentes nos meios de comunicação saíram esculhambando, protestando, até mesmo ridicularizando a recém criada Secult. O governador Jaques Wagner se reelegeu e mudou a equipe da cultura. Ao invés de editais polêmicos, ações taxadas de persecutórias, favorecimentos e equívocos denunciados e muita, mas muita picuinha tanto da parte do governo quanto da sociedade civil, ao invés disso tudo, assume a Secult uma equipe que decide passar um primeiro ano pagando – o que a classe teatral, por exemplo, aceita – as dívidas da gestão passada. O atual Secretário de Cultura, diga-se de passagem – e reitero isso mais uma vez, aqui – declarou, para ingênuo ciúme das outras áreas, que daria especial atenção ao teatro profissional, esperto que foi ao citar em seu discurso de posse a classe mais virulenta na relação com a Secult. Chegamos ao fim do segundo ano de gestão e o que foi feito? Chegamos à inércia da cultura. Tudo parou, recuou, desapareceu, foi esquecido, e nossa cultura da inércia aceitou isso. Além de tudo, novos editais serão lançados com dívidas já da atual gestão, provando que o paradeiro do primeiro ano é muito mais um reforço de nossa inércia do que uma atitude consciente coerente. Passamos, da antiga para a atual gestão, de diversos editais que garantiam um número de produções, circulações, publicações, etc., para um vazio total. Há que se considerar que, usando como exemplo a produção cultural, se muita coisa ruim estreou e muita coisa boa ficou de fora no mandato anterior de Wagner, foi justamente porque, na pretensa ideia de democratização, comissões compostas pela sociedade civil, artistas em sua esmagadora maioria, decidiram por isso. Digo pretensa porque o governo, ao escolher a comissão, também pode, já de início, manipular o resultado, bem como os critérios de avaliação dos projetos concorrentes.
Cadê os grandes bastiões da defesa da cultura? Os revoltados, questionadores, contestadores? Saímos de uma gestão ativa e taxada de negativa em suas ações, para uma gestão letárgica, inativa e que provocou a mesma inércia nos irascíveis combatentes da cultura.
Seja pela educação, pela nossa história cultural, pela nossa ressaca de ex-capital, pela monocultura que veio das plantações para um comportamento cultural do soteropolitano, seja porque cargas d’água que seja, mas é fato que chegamos a uma situação onda a arte não faz parte dos interesses do soteropolitano. Vivemos uma cultura do entretenimento, e a brutalidade tomou conta da cidade também por isso.
Há duas soluções simples.
A primeira é aceitar nossa cultura da inércia e, com isso, ser conivente e/ou resignado com a inércia da cultura. Administra-se as grandes festas, dá-se um trocado aqui e acolá para os artistas fazerem peças pra si mesmo e seus colegas e familiares, esses mesmos artistas ficam felizes em estar conseguindo produzir, e vamos numa ciranda de inutilidade. Salvador seguirá, assim, sua sina de mediocridade, falta de educação, estupidez e burrice, sendo, como disse acima, um grande cervejódromo e puteiro a céu aberto, espremido entre duas festas, a cada semestre, oscilando entre prefeitos que deixem a cidade transitável e limpa – notadamente nos bairros mais “nobres”, com uma reforminha de fachada aqui e acolá nos subúrbios e periferias – e outros que destruam ela, como nosso atual que, no apagar das luzes, está mais preocupado com a aprovação de suas contas e sua campanha ao governo do estado. E fica um recado, principalmente aos que elegerem e reelegeram-no: é possível que ele ganhe, pois vocês, nós, Salvador, botou e deixou-o lá, a despeito de tudo: por que não a Bahia?
A segunda opção é óbvia, um contraponto à primeira. Sairmos dessa cultura da inércia e questionarmos a inércia da cultura.
Uma tola comparação. Se você chegar para uma criança e pedir pra ela escolher entre dois tipos de refeição diária: a primeira, frutas, cereais e pão integral, pela manhã, feijão, arroz, salada e peixe no almoço e sopa e frutas no jantar, e a segunda, hambúrguer e milk-shake, pela manhã, macarrão, farofa, ovo frito e batata frita, no almoço, e hambúrguer, Milk-shake, batata frita e chocolate à noite. O que ela escolheria? O que seria melhor pra ela?
Numa cidade à beira da barbárie, sua população não vai demandar espetáculos de dança, peças profissionais de qualidade, concertos de câmara, óperas, festivais dessas linguagens, retrospectiva de grandes cineastas, exposições internacionais e nacionais, acervo exposto dos grandes artistas locais. Não vai.
Esse movimento deve e tem que vir “de cima pra baixo”. Tem que ser uma ação pensada, arquitetada e intencionalmente feita pelo governo municipal e estadual com o intuito de ampliar a cultura de seu povo, diversificar opções, engrandecer sua sensibilidade, conhecimento, visão de mundo e poesia.
É engano achar que as artes surgiram como movimentos endógenos, naturais e necessidade premente de povos e nações. Basta estudar um pouco de história para perceber como governos, impérios e reinados, utilizaram-se, de forma consciente, das artes como forma de fortalecer, engrandecer e dar identidade, legitimidade a uma nação, ou povo, ou civilização. Basta colocar no Google nomes como Péricles, Renascimento Italiano, Teatro Elisabetano, basta ler um excelente prefácio de Martin Esslin para uma compilação de ensaios de teatro alemão, e ler sua inveja em relação à Alemanha, que, percebendo a força do teatro como instrumento cultural de excelência e engrandecimento de sua cultura, incentivou e fortaleceu essa arte de forma significativa.
ACM Neto sabe muito pouco ou nada disso, e nem sequer demonstra a postura de estadista que percebe na cultura um poder de mudança, transformação e engrandecimento de um povo. Assim o é com Jaques Wagner, assim seria com Pelegrino, provavelmente, por mais que, assim como os viadutos e a pressão do “time de Lula”, a cultura parecesse ser um eixo da sua campanha.
Há gente capaz, visionária, disponível na praça? Talvez não como sonhamos, e com as ferramentas necessárias. A não criação de uma secretaria de cultura municipal já traduz um pouco os caminhos de Neto. Eu arriscaria a propor não uma secretaria de cultura, mas uma secretaria das artes, onde o carnaval e o São João ficassem de fora – fossem pra turismo e infraestrutura, por exemplo – e houvesse um pensamento direcionado a enlevar e ampliar, diversificar a monocultura do soteropolitano.
Contudo, para se tirar Salvador dessa inércia da cultura, é preciso que alguns, poucos ou muitos, saiam de sua cultura da inércia. Vivemos numa cidade onde quando alguém pensa, critica, questiona e se posiciona, é prontamente alvejado, irresponsavelmente e destrutivamente alijado. Toda tentativa de ir ao encontro da luz, como no mito de Platão, gera reação virulenta. Basta que todos aquiesçam com as sombras para que o silêncio impere e a escuridão nos cubra de desgraça.
Salvador precisa urgentemente ser mudada através de sua arte e de sua cultura. Asfaltos sem buraco, orla bonita, segurança, trânsito livre e outras questões prementes, necessárias e fundamentais, não modificarão a cidade. É preciso se pensar uma Salvador do século XXI, ao menos uma pequena revolução cultural e de costumes para sairmos dessa barbárie.
Precisamos acabar com essa nossa cultura da inércia, nos posicionarmos, em conjunto, contra as sombras que nos cegam, reclamarmos e reivindicarmos que nossa cultura saia dessa inércia e que possamos ter uma cidade melhor não só na aparência e funcionamento. Mas em sua alma e coração.
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