Escrito por Gianni Paula de Melo - Revista Continente
No momento em que o país apresenta um significativo número de metrópoles que não param de “inchar” – para usar o termo que Gilberto Freyre considerava mais adequado que a simples ideia de “crescer” – , o intelectual baiano reúne no livro A cidade no Brasil (Editora 34).uma série de ensaios que remontam ao processo de urbanização do país desde o período colonial, mostrando como e por que chegamos ao atual modelo caótico.
Ao tópico crise urbana contemporânea, ele dedica apenas o último capítulo do livro, no qual condensa questões como segregação, segurança pública e privatização de espaços coletivos. A Revista Continente procurou Risério para aprofundar esses assuntos que têm pautado discussões diárias nas grandes cidades brasileiras.No momento em que o país apresenta um significativo número de metrópoles que não param de “inchar” – para usar o termo que Gilberto Freyre considerava mais adequado que a simples ideia de “crescer” – , o intelectual baiano reúne no livro A cidade no Brasil (Editora 34).uma série de ensaios que remontam ao processo de urbanização do país desde o período colonial, mostrando como e por que chegamos ao atual modelo caótico.
PSF: A atual crise urbana é um fenômeno generalizado ou conseguiríamos apontar metrópoles do país que escapam a essa lógica?
ANTONIO RISÉRIO: A crise é geral. Nenhuma cidade importante, de uma ponta a outra do país, vive dias tranquilos. Brasília, apesar de sua claridade e de suas virtudes, está no meio disso. E vai ficando sempre mais violenta. Curitiba, exemplo extremo de city marketing, com aquela arquitetura pesada e fechada, como boa parte dos seus habitantes, também. É claro que a cidade experimentou avanços, mas a Curitiba real, com favelas e discriminações, não coincide com a retórica de Jaime Lerner. O Brasil fez seu grande movimento de transição urbana – coisa que hoje vemos na China, na Índia e em países africanos como a Nigéria – entre as décadas de 1950 e 1970. Foi aí que tivemos a migração massiva do campo para a cidade, com o país deixando de ser vastamente rural para se tornar predominantemente urbano. Mas os problemas não foram resolvidos. São Paulo, por exemplo, tornou-se ainda mais desequilibrada, desigual e segregada, com uma nova e imensa periferia formando-se a partir da década de 1950, no rastro da indústria automobilística – desta vez, não mais com imigrantes europeus, mas com a migração nordestina. Hoje, ainda é a nossa cidade mais rica e poderosa, mas é um lugar onde a “mobilidade urbana” corre o risco de se converter em ficção urbanística e os serviços públicos são de baixa qualidade. Triste, ainda, é a situação de Salvador, mergulhada num estágio avançado de deterioração física e simbólica, com uma prefeitura que até 2012 mesclava corrupção e incompetência, um governo estadual omisso e uma população surpreendentemente apática. Para sair da grande crise urbana brasileira, vamos precisar de um verdadeiro Ministério das Cidades, de uma verdadeira reforma urbana nacional e de uma verdadeira vontade coletiva de sair do buraco.
PSF: Há uma música do Tom Zé que diz: “Bahia que padece de usura, que quer fazer torre de toda altura”, remetendo a um quadro de verticalização similar ao do Recife. É possível traçar um paralelo entre a capital pernambucana e Salvador?
ANTONIO RISÉRIO: Historicamente, a verticalização de cidades como Salvador e Recife começa com os altos sobrados coloniais. Sobrados de cinco e seis andares marcavam a paisagem dos antigos centros urbanos brasileiros. Outra coisa, que muita gente parece não notar, é o gosto ou a opção popular pela verticalização, visível em tantas favelas e bairros pobres, onde processos de autoconstrução geram prédios que vão somando andares. Não vejo isso nas “vilas” paulistanas, com suas casas de dois pavimentos, mas é coisa comum no Rio e na capital baiana. Outro dia, em Salvador, na confusão cheia de vida do bairro proletário de Pernambués, vi uma casa térrea com uma placa onde se lia “edifício fulano de tal”. Quer dizer, para além do otimismo do proprietário, tratava-se de um projeto, de algo predeterminado. Mas há uma diferença entre Salvador e o Recife, além do fato de que a capital pernambucana hoje é uma cidade mais organizada e menos malcuidada que a baiana. No Recife, já temos a verticalização da orla, como em Boa Viagem. Em Salvador, essa verticalização, em grande medida, ainda vai acontecer. Mas Salvador não deve seguir o exemplo do Recife, nesse caso. Porque o importante não é a altura das construções, mas a distância entre os prédios, que não pode ser pequena e deve ser definida com clareza e força de lei, de modo a garantir a passagem da luz e o movimento das brisas. Em Boa Viagem, temos uma parede de prédios, sombra na praia. O pior exemplo brasileiro, nesse sentido, é Copacabana. Afora isso, penso que a verticalização é menos danosa ao meio ambiente do que o espraiar dos subúrbios. A começar pelo consumo de terra: o sujeito que mora no vigésimo piso de um prédio, com dois apartamentos por andar, consome menos terra do que quem mora num condomínio de casas. Menos terra, menos água e menos energia. A cidade dispersa implica mais e maiores deslocamentos automobilísticos, mais gases de efeito estufa. A cidade compacta, ao contrário, aproxima as pessoas e as coisas.
PSF: “Fobópole” e “Privatopia” parecem conceitos centrais sobre a relação da sociedade com a cidade. Em que contexto surgem essas expressões?
ANTONIO RISÉRIO :Fobópole é o título de um livro de Marcelo Lopes de Souza, publicado no Rio, acho que em 2008. É uma palavra-montagem de extração grega, justapondo os vocábulos fobia e polis. Ou seja: “cidade do medo”. Privatopia é também um conceito novo, que surgiu em meio a estudiosos norte-americanos, justapondo uma palavra latina (privatus, no sentido de particular, de próprio) e uma grega (topus, de lugar), indicando o espaço privado como espaço ideal das classes privilegiadas, longe da promiscuidade, dos acasos e perigos dos espaços públicos. Essas expressões são filhas da violência e da segregação urbanas. Da violência e da segregação atuais, bem-entendido. Porque violência urbana sempre existiu. A Roma clássica era violenta, como violentas eram as vidas nas cidades coloniais brasileiras. A diferença, hoje, está na onipresença da violência e, consequentemente, na onipresença do medo. As pessoas passaram a construir muros não contra inimigos externos da cidade, mas contra supostos inimigos internos de classes ou grupos sociais economicamente dominantes. As cidades sempre tiveram muros delimitando sua área. O problema, hoje, é que os muros passaram a ser edificados intramuros, definindo enclaves fortificados. A fobópole incrementa aprivatopia. Os conceitos respondem a essa realidade, que se configura a partir da segunda metade do século 20.
PSF: A “cultura do medo” é interessante e rentável para várias frentes ideológicas e áreas de negócios. Você acredita que afobópole interessa ao próprio Estado?
ANTONIO RISÉRIO: A “cultura do medo”, levando elementos e princípios da engenharia de guerra (guaritas, cercas elétricas, sirenes, câmeras de vigilância, etc.) para a produção de moradias, por exemplo, é altamente lucrativa para certas fábricas, empresas de segurança e afins. Deve interessar a quem produz isso, a quem atua nessas áreas, a empresários e trabalhadores do ramo. Mas não vejo razão maior para isso interessar ao Estado. Na verdade, a onipresença do medo pode conduzir a uma espécie de militarização cotidiana da vida citadina que, se pode interessar a milícias, não interessa ao Estado, que se vê até mesmo na obrigação de tentar recuperar seu monopólio da coerção organizada.
PSF: Quais medidas a sociedade civil organizada poderia tomar para estimular uma reeducação entre as pessoas e a cidade?
ANTONIO RISÉRIO: Talvez seja o caso de a “sociedade civil” começar a pensar em sua própria educação, em procurar educar-se a si mesma, antes de pensar em qualquer outra coisa. Porque ela não é nenhum exemplo. É a grande criadora de problemas em nossas cidades. De onde vem toda a grossura no trânsito? Quem promove, consome e até celebra privatizações escandalosas de espaços públicos, como, por exemplo, de segmentos litorais de algumas cidades? A sociedade civil pode não ser a origem de todo o mal, como querem alguns filósofos, pensadores políticos, mas ela certamente não é nenhuma fonte sublime do bem. Vejamos uma coisa bem simples, rasteira. O problema todo, hoje, começa já na esfera da educação doméstica – e se prolonga no campo da educação urbana. As pessoas não sabem mais se comportar, dentro e fora de casa. Perderam o senso dos padrões razoavelmente aceitáveis de conduta urbana. Lembro-me, aliás, de que, quando eu era adolescente, as pessoas mais velhas costumavam empregar as palavras “urbano” e “urbanidade” como sinônimos de boa educação, de saber se comportar ou se conduzir na urbe. Num certo sentido, a expressãourbanidade era o nosso equivalente da sociabilité dos franceses. Uma pessoa urbana era uma pessoa polida. E hoje? A sociedade tem de reaprender até os chamados “bons modos”.
PSF: Os movimentos ligados às questões da urbanização refletiriam a segregação da sociedade, posto que são liderados por intelectuais de classe média e, às vezes, pouco articulados com as camadas populares?
ANTONIO RISÉRIO: Não é bem assim. Primeiro, porque, com ou sem intelectuais de classe média, as camadas populares vêm discutindo, a partir de suas óticas e informações, temas e problemas da vida urbana brasileira. Isso é bem visível em São Paulo, com associações de bairro, por exemplo, mas também em muitas outras cidades brasileiras. Acontecem até “audiências públicas” na Câmara Municipal para ouvir esses agrupamentos comunitários. De outra parte, não olho com nenhum preconceito o desempenho político-social de intelectuais da classe média. A classe média sempre esteve na vanguarda das transformações sociais e culturais do mundo moderno. Um dos erros espetaculares do marxismo, com sua ênfase no confronto antagônico entre burguesia e proletariado, foi, exatamente, o de achar que o destino da humanidade estava inteiramente nas mãos do proletariado e de atacar e afastar a classe média do campo progressista, empurrando-a para os braços do conservadorismo, da direita. Acho, por isso mesmo, que nossos artistas e intelectuais “de esquerda” ainda devem um grande hino, um elogio à coragem, à criatividade e à ousadia classemedianas. A classe média muitas vezes está na linha de frente de extraordinários avanços, de grandes conquistas. Está presente, sim, nos “movimentos ligados às questões da urbanização”. Mas não meramente em decorrência da segregaçãosocioespacial – e, sim, porque vive intensamente as cidades.
PSF: No livro, o termo “urbanização pirata”aparece relacionado às ocupações realizadas por moradores de ruas e favelas. Esse conceito está associado basicamente a esses tipos de ocupações ilegais?
ANTONIO RISÉRIO: São ocupações ilegais ou extralegais. Mas é preciso fazer uma diferenciação sociológica, porque os ricos também invadem terrenos públicos, constroem sem alvará, fazem mil coisas proibidas, sem falar do uso escandaloso de inside information, de informação privilegiada, para fins altamente lucrativos. Só não falamos de urbanização pirata, a propósito de tantas coisas, porque as elites não raro têm o aparelho estatal a seu serviço. Mas a verdade é que o comportamento de nossas elites sociais e econômicas, diante do espaço urbano, pode muitas vezes ser classificado como “caso de polícia”, embora essas pessoas raramente paguem pelo que fazem. Então, a expressão urbanização pirata fica reservada para coisas que envolvem segmentos populacionais menos favorecidos socialmente. É o caso de loteamentos clandestinos nas grandes cidades, com frequência assentados sobre as chamadas “áreas de risco”, com a autoconstrução proletária ou lumpemproletária ameaçando mananciais. É bandidagem fundiária atraindo pobres, não a bandidagem fundiária dos ricos, regra geral muito bem protegida.
PSF: Outro termo que você usa é “fundamentalismo ambientalista”. Acredita que há uma militância exagerada ligada à temática verde?
ANTONIO RISÉRIO: O problema não é de “militância exagerada”, mas de um ativismo cego, em que reinam uma série de clichês euma carência absurda de informações. O que temos, no Brasil, é um ambientalismo de ideólogos, em que não há cientistas. Então, a racionalidade é destronada pela crença, pelas fantasias, pelo fundamentalismo. Por esse mesmo caminho, nossos ambientalistas também querem fazer de conta que não serão gigantescas as dificuldades evidentes da passagem da economia de alto carbono para uma nova economia, uma economia “verde”, de baixo carbono. Vão ser dificílimos, também, a superação de hábitos, o descarte de ideologias e signos de “status”. Quando não se leva nada disso em consideração, o fundamentalismo dá as cartas – e esse ambientalismo fundamentalista ou esse fundamentalismo ambientalista não me interessa nem um pouco.
PSF: Além da superpopulação das metrópoles e do esvaziamento do campo, existe um movimento de urbanização das cidades de interior. Este é um quadro preocupante ou inevitável?
ANTONIO RISÉRIO: É inevitável. Marx já antevia uma urbanização em escala planetária. Diante das megacidades que nos aguardam, num futuro próximo, nossas atuais metrópoles ainda vão sugerir cidades de porte médio. As cidades caminham para conturbações espetaculares. No Brasil, também, e precisamos estar preparados para isso. Especialmente porque há um aspecto fundamental para nós, que não vivemos nas democracias ricas do Atlântico Norte: cidades imensas, hoje, são um fenômeno da pobreza, coisa de países emergentes. Durante o século 19, as maiores cidades do mundo eram europeias, mas as coisas mudaram. Em meados do século passado, Nova York deixou Londres para trás, tornando-se a maior cidade do planeta – mas, já pela década de 1980, Tóquio desbancou Nova York. Daí para cá, cidades extraeuropeias, cidades do Hemisfério Sul, crescem de modo espantoso. Hoje, no século 21, nenhuma das megacidades do mundo está na Europa. Elas se distribuem agora pelas Américas, pela Ásia e pela África. E aqui, fora dos EUA, estão se expandindo de um modo terrivelmente favelizado. São as megacidades subequatoriais, crescendo na China, na Índia, no Brasil, na Indonésia, no Egito, na Nigéria, na Turquia. Megacidades com megafavelas. Daí que Mike Davis diga que nosso futuro urbano, o futuro urbano do Hemisfério Sul, estará nas favelas, das barriadas mexicanas aos kampongs asiáticos. Isso não é profetismo apocalíptico, mas algo que já está acontecendo. A nossa grande luta urbana, nesta primeira metade do século 21, é contra a favelização final deste lado do nosso planeta. É dessa perspectiva que devem ser encarados todos os problemas, da mobilidade urbana aos delitos ambientais, passando pelo narcotráfico. Ou seja: o inevitável é, também, extremamente preocupante.
*Antônio Risério é Antropólogo e escritor. Participou das campanhas de Fernando Haddad e Dilma Roussef
*Antônio Risério é Antropólogo e escritor. Participou das campanhas de Fernando Haddad e Dilma Roussef
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