segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Fazendo Arqueologia em Salvador

Paulo Ormindo de Azevedo*
No auge da repressão, no final dos anos 60, me exilei voluntariamente na Itália e em Portugal, fazendo um doutorado. Nessa oportunidade conheci toda a Europa. Já era um arquiteto e cada nova cidade era uma descoberta e uma aula. Em Roma, Praga ou Paris aprendi que nenhuma cidade de verdade pode existir sem um rio, um lago, um mar e arquiteturas de todos os tempos. Em Veneza e Amsterdã vagabundeando por suas ruelas pensei comigo: esta é a condição que toda cidade deve almejar: estar livre de carros, possuir um céu azul e poder se refletir nas águas tranquilas dos canais. Não alcançarei, mas algum dia todo o tráfego urbano será subterrâneo e as ruas devolvidas aos cidadãos.
Voltei algumas vezes à Europa e em cada oportunidade aproveito para rever um beco, uma praça, uma ponte ou uma fonte. Está tudo em seu lugar, ainda bem! Mas a sempre um novo museu, uma sala de concerto ou uma estação de metrô da melhor arquitetura para refletir a antiga. Há um mês voltei à Itália para participar de um seminário na Sardenha. Revi Milão, Turim, Roma e conheci Cagliari e algumas vilas da ilha. O país está em crise econômica e política, mas suas cidades têm uma vida urbana impressionante e serviços públicos que funcionam. São milhares de pessoas curtindo suas praças, suas ruas e pontes. Não apenas turistas, mas casais jovens e velhos conversando em bancos públicos ou em torno de uma mesa debaixo de um toldo para comer e beber civilizadamente pastas, queijos e vinhos maravilhosos, como a nossa cozinha afro e aperitivos. Os fast foods servem apenas a turistas apressados, que não curtem nada, apenas fotografam.
Revejo a Salvador do final dos anos 60, quando fui à Europa. A cidade ainda estava íntegra e o inspetor-geral dos monumentos franceses, Michael Parent, em relatório para a UNESCO afirmou que Salvador era uma cidade-de-arte como Toledo e que havia um potencial turístico imenso nas cidades do Nordeste. Passado meio século, Salvador é uma cidade irreconhecível. Não me refiro só ao Centro Histórico esvaziado de seus valores humanos, sociais e imateriais, mas toda a cidade, sem céu, nem mar, obstruídos por torres-pardieiros paulistanos, “o vesso do avesso”, com seus traseiros embandeirados de panos de bunda.
A “modernidade especulativa” destruiu o nosso diferencial turístico transformando em ruína toda Cidade Baixa, Saúde e Palma. Os nossos bairros tradicionais foram destruídos pela introdução indiscriminada de serviços e espigões. O Corredor da Vitória, de onde se via por entre viletas e jardins a baía e Itaparica, foi emparedado por espigões de ocasião. Graça, canela e Barris com seus chalés e bangalôs já não existem como bairros. Os aprazíveis balneários de Itapagipe, Rio Vermelho, Amaralina e Itapuã. Também bairros populares, como Liberdade, pau Miúdo, Corta Braço e o subúrbio ferroviário, de intensa vida social, foram sucateados.
Onde está o paisagismo elegante do Passeio Público, da Piedade e do Jardim da Graça? E os balaústres, mosaicos e totens das calçadas do Largo do Teatro, da Barra, do Farol e do Rio Vermelho. Arquitetados pelo napolitano Filinto Santoro? Foi tudo destruído pela incúria de nossos prefeitos para dar lugar a formigueiros verticais e ao carro privado. Pouquíssimo restou da arquitetura neoclássica, da eclética de Rossi Baptista e Felinto Santoro e da modernista, de Diógenes Rebouças e Assis Reis. Do casario colonial só resta o cenário vazio do Pelourinho.
Caminho hoje por uma Salvador irreconhecível, transformada em um cipoal de concreto, sempre atento para não ser assaltado, narrando a arqueologia da cidade para os meus filhos e netos: aqui era o bairro dos mercadores, ali dos ferroviários, aqui existiu um rio, uma praça, um jardim, um chafariz, uma fábrica. Salvador me faz lembrar a Nova York do filme Planeta dos Macacos, cuja única coisa reconhecível é a estátua da Liberdade. Em Salvador, depois da invasão dos gorilas predadores, restará apenas o Elevador Lacerda arruinado, mas transformado em museu arqueológico. Não sou um saudosista, senão um futurólogo angustiado.
*Arquiteto e professor titular da Universidade Federal da Bahia


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