Lourenço Mueller*
O
bairro de Brotas é uma espécie de microcosmo desta cidade do Salvador. Vales,
colinas, extratos sociais diversificados e berço de grandes nomes baianos. Que
o diga o acadêmico Joaci Goes, dotado de privilegiada memória, capaz de lembrar-se
de detalhes da casa e dos filhos de meu tio José Lourenço Costa, participante da
1ª Semana de Urbanismo. Citada pelo arquiteto, urbanista, mestre de ciências
sociais e agora escritor Isaias de Carvalho Santos Neto (Memória urbana: poética para uma cidade. Salvador: Edufba.2012.
Lançado em 31 de outubro pp), a 1ª Semana foi a marca das prováveis primeiras
discussões institucionais sobre a cidade, ainda em 1935 e plantou as sementes
do Epucs, revivido lendariamente por Diógenes Rebouças em aulas inspiradas. O
professor Diógenes, ligando meu nome ao de José Lourenço Costa – engenheiro graduado
em universidade americana, professor da Politécnica e responsável por parte da
eletrificação da cidade (um dos pioneiros funcionários da Companhia de Energia
Elétrica da Bahia, a avó da Coelba) – distinguiu-me com saborosas histórias da
primeira experiência de planejamento urbano desta cidade.
Conto
este fato para roubar do irmão de meu pai um pouco de tradição e legitimidade
no meu ofício de urbanista e articulista (como lembrou Alexandre Cunha Guedes,
seu ex-aluno, Costa escreveu neste jornal a coluna “O escravo elétrico”),
instigar arquitetos mais jovens e os emergentes que não tiveram a sorte de se
maravilhar com estas narrativas em versão original.
O
trabalho de Isaias registra um pedaço de Brotas, o Acupe, onde viveu parte da
infância, na “Roça”, como era conhecida a propriedade em família. Morei numa das
ruas geradas pelo parcelamento da enorme gleba, a Rua José Carlos e também tenho
lá as minhas lembranças.
Tive
momentos de intenso êxtase emotivo conduzido pelas veredas “poéticas” lembradas
por Isaias, de incrível completude icnográfica pelas fotos antigas que ele
paciente e magicamente desencavou.
Não
fosse o autor possuir formação acadêmica tão rica e ter passado pela Faculdade
de Filosofia no curso de pós-graduação criado por Machado Neto e do qual
fizeram parte nomes como Nadya Castro, João José Reis , Consuelo Novais
Sampaio, Luiz Mott, Célia Maria Leal Braga, Vivaldo da Costa Lima, entre
outros, e apenas uma aluna brilhante o suficiente para representar o alunato,
Marília Muricy, não fora essa formação e as leituras polissêmicas que fez em
disciplinas não incluídas na grade do curso de Arquitetura e não teríamos uma
história urbana tão mesclada de aportes ao mesmo tempo emotivos e de crítica
teórica, como a confirmação de que as cidades são a representação espacial de uma
sociedade (pg. 164, citando Weber e Lefébvre) ou a “cidade é um estado de
espírito...um produto da natureza...humana” (pg.172, menções à chamada escola
de Chicago, de Louis Wirth e Robert Ezra Park).
A
Edufba e sua diretora Flavia Garcia Rosa estão mais uma vez de parabéns por
prodigalizarem esses eventos à nossa comunidade tão carente de discussões sobre
urbanismo fora da torre de marfim: em abril deste ano publicou uma reedição que
comentei em artigo de A Tarde (29.04) ! Bêabá da Bahia e de qualquer metrópole”
com prefácio de Fernando da Rocha Peres, também citado por Isaias.
O
autor lembrou-se de delícias históricas como o açougue, o armazém e a carvoaria
na esquina da Clião Arouca coma D. João VI (pg. 1440 e ...dos bondes. Também
uma gentil leitora, Itana Viana, me escreve sobre bondes, o que prova que
Salvador “do já foi e do já teve” é pioneira nestes misteres de transporte
sobre trilhos.
Antes
da posse do prefeito eleito pensei em desdobrar mais “conselhos ao príncipe”,
mas perdi-me (ou achei-me) na poética de Isaias. Vou pongar no bonde da Memória Urbana e sonhar com um museu que
recolha a história oral das pessoas – como os registros de Isaias e de gente
como Itana – para construir memória viva da Salvador dos trilhos, esses que
funcionaram um dia e tem sido tão difíceis de refazer hoje...
*Arquiteto e Urbanista
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