Antônio Risério*
Pernambucanos, sergipanos, etc., se sentem e se definem como nordestinos. A Bahia não se manifesta assim. Os sertanejos da Bahia podem se ver como nordestinos, mas os baianos do Recôncavo não. Não é estranho, nem de estranhar. De fato, é muito difícil situar o Recôncavo Baiano no Nordeste. A paisagem é exuberante, chove muito, água é o que não falta na região. Salvador e as cidades do Recôncavo não sabem o que é a seca. A culinária local vive de frutos do mar e azeite de dendê. Não tem nada a ver com carne-de-sol. Sua música é o samba de Caymmi, não o forró de Luiz Gonzaga. E o misticismo de sua gente exibe, de modo forte e vistoso, a presença e o brilho de deuses nascidos na África Negra. O Recôncavo não tem nada a ver com Antonio Conselheiro e Padre Cícero. Culturalmente, o Recôncavo fornece a imagem que os brasileiros fazem da Bahia. Economicamente, é a região mais rica do estado. Além disso, geograficamente, Salvador e o Recôncavo não ficam exatamente no Nordeste. São terras a leste. Ficam no Brasil Atlântico Central. Por tudo isso, seria muito difícil a Bahia se manifestar como nordestina, a não ser no momento de receber verbas federais, desde os velhos tempos da Sudene de Celso Furtado.
Na verdade, a definição do que seja o Nordeste é mais histórico-política do que geográfico-ambiental. É uma definição confusa, que não prima pela clareza, nem pelo rigor. As configurações ecossistêmicas são simplesmente ignoradas, deixadas de lado por determinações políticas. Basta refletir um pouco para reconhecer estas violações da geografia e das realidades ambientais. A Mata Atlântica não se interrompe bruscamente na região de Porto Seguro. Não estaciona na fronteira da Bahia com o Espírito Santo. Pelo contrário, desce em direção ao Rio de Janeiro e segue adiante. Se é difícil aceitar a classificação do Recôncavo no Nordeste, mais difícil ainda é incluir, neste, a região de Porto Seguro. O cerrado conecta o oeste da Bahia não ao Recôncavo, mas ao planalto central do país. Em outro extremo, as terras frescas do Maranhão, antes que se vincular ecologicamente ao Raso da Catarina ou ao agreste pernambucano, ligam-se, naturalmente, ao mundo amazônico. Neste sentido, o Nordeste não existe.
Daí que Euclydes (com "y"; era assim que ele assinava - acho absurdo mudar a grafia do nome das pessoas, depois que elas morrem) da Cunha, Gilberto Freyre (também com "y") e Roger Bastide falem de duas Bahias, de dois Nordestes. De um lado, o sertanejo-antes-de-tudo-um forte; de outro, os "mestiços neurastênicos do litoral". O que Euclydes vê no sertão é a paisagem atormentada. O "martírio da terra", com seus verões queimosos, seus tabuleiros rasos, suas formações calcárias. Dentro do martírio da terra, o martírio humano. E assim como vê a diferença climática entre o sertão e a orla do mar, Euclydes nota, também, a diferença antropológica. No sertão, brancos e índios gerando mamelucos. No litoral, predomínio do cruzamento de brancos e negros - e seu produto típico, o mulato. E esta leitura de Euclydes foi matizada e enriquecida por Freyre e Bastide.
Freyre distingue maravilhosamente entre o Nordeste litorâneo da cultura do açúcar, alongando-se, por terras de massapê (é com "ê", sim) e várzeas, do Recôncavo da Bahia ao mar do Maranhão, e o Nordeste pastoril que se alarga para o interior. Sua análise é ecológica, histórica e antropológica (não há espaço para reproduzi-la aqui; mas, se alguém se interessar, leia o livro Nordeste). Bastide (Brasil, Terra de Contrastes) acentuou ao extremo as diferenças, com observações finas sobre o meio ambiente, a fisionomia etnodemográfica, a religiosidade. Em síntese, um seria o Nordeste barroco e canavieiro, místico e erótico, com as suas praias e os seus orixás. Outro seria o Nordeste do gado e do couro, ascético e milenarista, com procissões que se arrastam pedindo chuva.
Tudo bem, dois Nordestes. Mas nem esta relativização leva os baianos de Salvador e do Recôncavo a se verem no Nordeste ou como nordestinos. E isto cria alguns problemas. A rivalidade entre Pernambuco e a Bahia, hoje, se diluiu. Mas, nas camadas populares de Pernambuco, persiste. Os baianos, antigamente, provocavam, em termos que poderiam estar num texto de Joyce: "Recífilis, a venérea brasileira, capital de Pernambucocos". Hoje, ninguém se lembra disso. Mas os sergipanos ainda reagem. Dizem que os baianos fazem pouco caso de Sergipe, têm uma visão preconceituosa dos sergipanos e não se reconhecem como nordestinos. Como disse, sertanejos da Bahia se vêem como nordestinos. Mas o que Salvador tem a ver com a cultura do couro, de que falava o velho Capistrano de Abreu?
*Escritor, antropólogo e poeta
Pernambucanos, sergipanos, etc., se sentem e se definem como nordestinos. A Bahia não se manifesta assim. Os sertanejos da Bahia podem se ver como nordestinos, mas os baianos do Recôncavo não. Não é estranho, nem de estranhar. De fato, é muito difícil situar o Recôncavo Baiano no Nordeste. A paisagem é exuberante, chove muito, água é o que não falta na região. Salvador e as cidades do Recôncavo não sabem o que é a seca. A culinária local vive de frutos do mar e azeite de dendê. Não tem nada a ver com carne-de-sol. Sua música é o samba de Caymmi, não o forró de Luiz Gonzaga. E o misticismo de sua gente exibe, de modo forte e vistoso, a presença e o brilho de deuses nascidos na África Negra. O Recôncavo não tem nada a ver com Antonio Conselheiro e Padre Cícero. Culturalmente, o Recôncavo fornece a imagem que os brasileiros fazem da Bahia. Economicamente, é a região mais rica do estado. Além disso, geograficamente, Salvador e o Recôncavo não ficam exatamente no Nordeste. São terras a leste. Ficam no Brasil Atlântico Central. Por tudo isso, seria muito difícil a Bahia se manifestar como nordestina, a não ser no momento de receber verbas federais, desde os velhos tempos da Sudene de Celso Furtado.
Na verdade, a definição do que seja o Nordeste é mais histórico-política do que geográfico-ambiental. É uma definição confusa, que não prima pela clareza, nem pelo rigor. As configurações ecossistêmicas são simplesmente ignoradas, deixadas de lado por determinações políticas. Basta refletir um pouco para reconhecer estas violações da geografia e das realidades ambientais. A Mata Atlântica não se interrompe bruscamente na região de Porto Seguro. Não estaciona na fronteira da Bahia com o Espírito Santo. Pelo contrário, desce em direção ao Rio de Janeiro e segue adiante. Se é difícil aceitar a classificação do Recôncavo no Nordeste, mais difícil ainda é incluir, neste, a região de Porto Seguro. O cerrado conecta o oeste da Bahia não ao Recôncavo, mas ao planalto central do país. Em outro extremo, as terras frescas do Maranhão, antes que se vincular ecologicamente ao Raso da Catarina ou ao agreste pernambucano, ligam-se, naturalmente, ao mundo amazônico. Neste sentido, o Nordeste não existe.
Daí que Euclydes (com "y"; era assim que ele assinava - acho absurdo mudar a grafia do nome das pessoas, depois que elas morrem) da Cunha, Gilberto Freyre (também com "y") e Roger Bastide falem de duas Bahias, de dois Nordestes. De um lado, o sertanejo-antes-de-tudo-um forte; de outro, os "mestiços neurastênicos do litoral". O que Euclydes vê no sertão é a paisagem atormentada. O "martírio da terra", com seus verões queimosos, seus tabuleiros rasos, suas formações calcárias. Dentro do martírio da terra, o martírio humano. E assim como vê a diferença climática entre o sertão e a orla do mar, Euclydes nota, também, a diferença antropológica. No sertão, brancos e índios gerando mamelucos. No litoral, predomínio do cruzamento de brancos e negros - e seu produto típico, o mulato. E esta leitura de Euclydes foi matizada e enriquecida por Freyre e Bastide.
Freyre distingue maravilhosamente entre o Nordeste litorâneo da cultura do açúcar, alongando-se, por terras de massapê (é com "ê", sim) e várzeas, do Recôncavo da Bahia ao mar do Maranhão, e o Nordeste pastoril que se alarga para o interior. Sua análise é ecológica, histórica e antropológica (não há espaço para reproduzi-la aqui; mas, se alguém se interessar, leia o livro Nordeste). Bastide (Brasil, Terra de Contrastes) acentuou ao extremo as diferenças, com observações finas sobre o meio ambiente, a fisionomia etnodemográfica, a religiosidade. Em síntese, um seria o Nordeste barroco e canavieiro, místico e erótico, com as suas praias e os seus orixás. Outro seria o Nordeste do gado e do couro, ascético e milenarista, com procissões que se arrastam pedindo chuva.
Tudo bem, dois Nordestes. Mas nem esta relativização leva os baianos de Salvador e do Recôncavo a se verem no Nordeste ou como nordestinos. E isto cria alguns problemas. A rivalidade entre Pernambuco e a Bahia, hoje, se diluiu. Mas, nas camadas populares de Pernambuco, persiste. Os baianos, antigamente, provocavam, em termos que poderiam estar num texto de Joyce: "Recífilis, a venérea brasileira, capital de Pernambucocos". Hoje, ninguém se lembra disso. Mas os sergipanos ainda reagem. Dizem que os baianos fazem pouco caso de Sergipe, têm uma visão preconceituosa dos sergipanos e não se reconhecem como nordestinos. Como disse, sertanejos da Bahia se vêem como nordestinos. Mas o que Salvador tem a ver com a cultura do couro, de que falava o velho Capistrano de Abreu?
*Escritor, antropólogo e poeta
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