Horacio Capel**
Nesta nova Europa ultramarina que foi o Brasil desde o século XVI, como outros territórios do norte e do sul da América, e nesta realidade nova e dinâmica que é o Brasil atual, a conservação do centro de Salvador tem uma grande importância nacional e internacional. É a amostra de uma cidade européia construída a partir do Renascimento, com este estilo e com os do Barroco e o Neoclassicismo. Mas é também um desafio e um laboratório para construir uma sociedade diferente. Do êxito ou fracasso dessa construção dependerão muitas coisas.
As circunstâncias históricas da construção do Brasil português, e logo as que estão relacionadas com a Independência do país, fizeram que Salvador, como todo o território brasileiro, sendo parte cultural da Europa, fosse também outra coisa distinta. Durante meio milênio vem se convertendo em um crisol, em um território de intensa mestiçagem e de nova interação intercultural, que é hoje uma realidade vital e de grande dinamismo cultural. Um Brasil que é uma superpotência mundial, um foco que muitos miram como um possível modelo para todo o planeta, pelo dinamismo cultural e a vitalidade da mestiçagem.
Mas nem tudo é cor de rosa. Há perigos evidentes. E isto se percebe claramente em Salvador. Uma, as diferenças sociais, muito patentes. Outra, a oposição à mestiçagem e o desenvolvimento do black power. Salvador, e especialmente o centro da cidade, que foi considerada a Roma negra, é identificada com a negritude. Não só pela importância dessa população como também pela grande efervescência cultural na cidade nos anos 1980-90 e o seu peso na construção da identidade.
A mutação de Salvador, e especialmente de seu centro histórico tem sido verdadeiramente espetacular. De constituir um símbolo da presença européia na América se transmutou em um símbolo da cultura brasileiro-africana. Alguns inclusive a consideram uma espécie de quilombo, um território negro independente.
Mas o centro histórico de Salvador não pode ser um lugar à margem da cidade, pois há de ser sentido como seu por parte de toda a população soteropolitana. Igual para todo o amplo e diverso Brasil, que o deve perceber como uma de suas raízes identitárias.
A imitação dos modelos sociais norte-americanos por parte da população brasileira de origem africana parece haver aumentado nos últimos anos. A aspiração a um black power é formulada explicitamente por alguns, com o beneplácito e o apoio encoberto ou explícito de fundações norte-americanas, que defendem o padrão dicotômico que domina nos Estados Unidos e que seguramente veriam com agrado a fragmentação do Brasil.
Mas o Brasil não é os Estados Unidos, e os modelos daquele país não deveriam ser seguidos no Brasil, que tem uma realidade histórica e racial diferente, e onde a mestiçagem é um impulso irresistível, que dá uma grande força a esta grande nação. O problema foi muito oportunamente analisado pelo professor Pedro de Almeida Vasconcelos, em dois excelentes artigos que estão publicados na revista eletrônica Biblio 3W, da Universidade de Barcelona (nº 729 e 732), e cuja leitura recomendamos entusiasticamente.
Sem dúvida no Brasil as diferenças sociais são enormes, e não cabe dúvida que – como em outros países americanos – as classes dirigentes tiveram até o início do século XX uma clara atitude racista (que alguns seguiram mantendo nos anos seguintes). Mas o Brasil é um país que tem desde a época portuguesa uma forte mistura entre todos os grupos raciais, talvez pelo fato de que os imigrantes dessa nacionalidade foram relativamente escassos e majoritariamente do gênero masculino.
Temos de levar em conta que nos Estados Unidos, apesar da abolição da escravatura, os descendentes de africanos ficaram totalmente segregados até 1960, e a presença de uma gota de sangue africano converte as pessoas em negros. Basta escutar o qualitativo racial que se atribui ao presidente Obama, que é designado normalmente, e de forma inadequada, como negro, sendo na realidade, pelo que sabemos, um mestiço.
No Brasil a questão racial é muito mais complexa, com mistura de, ao menos, três grandes grupos (indígenas brasileiros, europeus e africanos) cada um dos quais tem, por sua vez, importantes diferenças genéticas internas. A mistura tem dado lugar a uma estrutura social e racial muito complexa, desde logo diferente da norte-americana. A cor da pele não é um elemento que deva servir para classificar os indivíduos; o que importa são as diferenças sociais que existem entre uns e outros, e que todos os brasileiros devem esforçar-se em reduzir se querem um futuro de paz e bem-estar.
A proposta de reunir os pardos e os pretos em uma única categoria como negros ou como afro-descendentes é muito perigosa para o futuro do Brasil. A intensa miscigenação que existe neste país é um dado muito positivo, e a consolidação do Brasil como um país mestiço abre uma via de esperança e um modelo para o conjunto da humanidade.
A ascensão social é possível e está se realizando, ainda que lentamente. Alguns exemplos que poderíamos citar mostram que isso é possível. Entre eles o de um dos baianos mais ilustres, o professor Milton Santos, uma das figuras mais destacadas e reconhecidas da geografia mundial, um cientista social de grande prestígio, um intelectual reconhecido dentro e fora do Brasil e um cidadão comprometido com a defesa das liberdades democráticas. Um documentário sobre ele, "Encontro com Milton Santos ou o mundo global visto do lado de cá”, realizado por Silvio Tendler, começa com uma frase que impressiona. “Milton Santos, neto de escravos”. Que em duas gerações haja conseguido passar da situação de escravidão a uma posição brilhante a escala da ciência mundial é uma prova da existência de processos de ascensão social. É a melhor prova de que é possível um futuro brilhante para o Brasil, um modelo de sociedade para todos os países do mundo.
O caminho da mestiçagem é o adequado. O outro é o da separação racial e o enfrentamento. O que se eleja ou o que acabe triunfando em Salvador vai influenciar o futuro do Brasil.
Nesta nova Europa ultramarina que foi o Brasil desde o século XVI, como outros territórios do norte e do sul da América, e nesta realidade nova e dinâmica que é o Brasil atual, a conservação do centro de Salvador tem uma grande importância nacional e internacional. É a amostra de uma cidade européia construída a partir do Renascimento, com este estilo e com os do Barroco e o Neoclassicismo. Mas é também um desafio e um laboratório para construir uma sociedade diferente. Do êxito ou fracasso dessa construção dependerão muitas coisas.
As circunstâncias históricas da construção do Brasil português, e logo as que estão relacionadas com a Independência do país, fizeram que Salvador, como todo o território brasileiro, sendo parte cultural da Europa, fosse também outra coisa distinta. Durante meio milênio vem se convertendo em um crisol, em um território de intensa mestiçagem e de nova interação intercultural, que é hoje uma realidade vital e de grande dinamismo cultural. Um Brasil que é uma superpotência mundial, um foco que muitos miram como um possível modelo para todo o planeta, pelo dinamismo cultural e a vitalidade da mestiçagem.
Mas nem tudo é cor de rosa. Há perigos evidentes. E isto se percebe claramente em Salvador. Uma, as diferenças sociais, muito patentes. Outra, a oposição à mestiçagem e o desenvolvimento do black power. Salvador, e especialmente o centro da cidade, que foi considerada a Roma negra, é identificada com a negritude. Não só pela importância dessa população como também pela grande efervescência cultural na cidade nos anos 1980-90 e o seu peso na construção da identidade.
A mutação de Salvador, e especialmente de seu centro histórico tem sido verdadeiramente espetacular. De constituir um símbolo da presença européia na América se transmutou em um símbolo da cultura brasileiro-africana. Alguns inclusive a consideram uma espécie de quilombo, um território negro independente.
Mas o centro histórico de Salvador não pode ser um lugar à margem da cidade, pois há de ser sentido como seu por parte de toda a população soteropolitana. Igual para todo o amplo e diverso Brasil, que o deve perceber como uma de suas raízes identitárias.
A imitação dos modelos sociais norte-americanos por parte da população brasileira de origem africana parece haver aumentado nos últimos anos. A aspiração a um black power é formulada explicitamente por alguns, com o beneplácito e o apoio encoberto ou explícito de fundações norte-americanas, que defendem o padrão dicotômico que domina nos Estados Unidos e que seguramente veriam com agrado a fragmentação do Brasil.
Mas o Brasil não é os Estados Unidos, e os modelos daquele país não deveriam ser seguidos no Brasil, que tem uma realidade histórica e racial diferente, e onde a mestiçagem é um impulso irresistível, que dá uma grande força a esta grande nação. O problema foi muito oportunamente analisado pelo professor Pedro de Almeida Vasconcelos, em dois excelentes artigos que estão publicados na revista eletrônica Biblio 3W, da Universidade de Barcelona (nº 729 e 732), e cuja leitura recomendamos entusiasticamente.
Sem dúvida no Brasil as diferenças sociais são enormes, e não cabe dúvida que – como em outros países americanos – as classes dirigentes tiveram até o início do século XX uma clara atitude racista (que alguns seguiram mantendo nos anos seguintes). Mas o Brasil é um país que tem desde a época portuguesa uma forte mistura entre todos os grupos raciais, talvez pelo fato de que os imigrantes dessa nacionalidade foram relativamente escassos e majoritariamente do gênero masculino.
Temos de levar em conta que nos Estados Unidos, apesar da abolição da escravatura, os descendentes de africanos ficaram totalmente segregados até 1960, e a presença de uma gota de sangue africano converte as pessoas em negros. Basta escutar o qualitativo racial que se atribui ao presidente Obama, que é designado normalmente, e de forma inadequada, como negro, sendo na realidade, pelo que sabemos, um mestiço.
No Brasil a questão racial é muito mais complexa, com mistura de, ao menos, três grandes grupos (indígenas brasileiros, europeus e africanos) cada um dos quais tem, por sua vez, importantes diferenças genéticas internas. A mistura tem dado lugar a uma estrutura social e racial muito complexa, desde logo diferente da norte-americana. A cor da pele não é um elemento que deva servir para classificar os indivíduos; o que importa são as diferenças sociais que existem entre uns e outros, e que todos os brasileiros devem esforçar-se em reduzir se querem um futuro de paz e bem-estar.
A proposta de reunir os pardos e os pretos em uma única categoria como negros ou como afro-descendentes é muito perigosa para o futuro do Brasil. A intensa miscigenação que existe neste país é um dado muito positivo, e a consolidação do Brasil como um país mestiço abre uma via de esperança e um modelo para o conjunto da humanidade.
A ascensão social é possível e está se realizando, ainda que lentamente. Alguns exemplos que poderíamos citar mostram que isso é possível. Entre eles o de um dos baianos mais ilustres, o professor Milton Santos, uma das figuras mais destacadas e reconhecidas da geografia mundial, um cientista social de grande prestígio, um intelectual reconhecido dentro e fora do Brasil e um cidadão comprometido com a defesa das liberdades democráticas. Um documentário sobre ele, "Encontro com Milton Santos ou o mundo global visto do lado de cá”, realizado por Silvio Tendler, começa com uma frase que impressiona. “Milton Santos, neto de escravos”. Que em duas gerações haja conseguido passar da situação de escravidão a uma posição brilhante a escala da ciência mundial é uma prova da existência de processos de ascensão social. É a melhor prova de que é possível um futuro brilhante para o Brasil, um modelo de sociedade para todos os países do mundo.
O caminho da mestiçagem é o adequado. O outro é o da separação racial e o enfrentamento. O que se eleja ou o que acabe triunfando em Salvador vai influenciar o futuro do Brasil.
* Trecho do prefácio do livro. "O Centro Histórico de Salvador e a sua integração sócio-urbana." BOMFIN, Juárez. Salvador: UFB, 2010
** Horacio Capel: Professor Catedrático em Geografia Humana - Universidade de Barcelona.
Nenhum comentário:
Postar um comentário