domingo, 20 de junho de 2010

O inverno ou a primavera urbana?

Anilton Santos Silva*
A partir do momento em que foi aprovado o direito à reeleição dos nossos governantes, sempre se questionou se isso era bom ou ruim para a gestão das cidades. A dúvida é decorrente do fato de que uma gestão de oito anos poderia ser um longo ciclo de inverno tenebroso ou uma primavera florida. Se for o caso de oito anos de tormento, é algo mais que tenebroso para os habitantes urbanos – é desumano mesmo. Logo tenho um sentimento refratário quanto à reeleição.
No caso específico de Salvador, o longo ciclo de gestão, aliado às dificuldades das finanças públicas, gerou um nó, que parece não interessar a ninguém desatar: trata-se de uma articulação engendrada entre incorporadoras da construção civil, sindicatos empresariais (setor de transportes urbanos e outros), especuladores imobiliários e políticos comprometidos co grupos hegemônicos, objetivando interferir na gestão da cidade para viabilizar projetos de seus interesses. Tal articulação é que determina o destino urbano, restringindo o direito universal à cidade.
Para esses grupos, a cidade se divide em guetos, cujo ônus de recuperação cabe ao setor público, embora a incorporação imobiliária contribua decisivamente para a constituição deste fenômeno, na medida em que controla a estrutura fundiária urbana, pressionando os pobres para a periferia ou para áreas impróprias à ocupação, através de invasões ou loteamentos clandestinos. A outra parte da cidade, o território capitalizado é como a bolsa de valores ao sabor do sobe e desce de sua cotação, e no caso urbano, a depender da infra-estrutura de equipamentos que podem valorizar ou desvalorizar áreas, de acordo com a natureza do impacto causado por tais intervenções.
Os excluídos ou isolados do processo decisório, ou seja, os demais atores sociais tentam se organizar para fazer gente à articulação dos grupos dominantes na gestão da cidade. Assim, os agrupamentos que buscam interferir no presente e no futuro da cidade assumem um embate entre dois campos de forças com objetivos opostos: a cidade do capital e a cidade para seus habitantes.
Os grupos que assumem o enfrentamento com as forças do capital necessitam de uma articulação mais eficiente entre suas diversas correntes (ambientalistas, os sem-teto, instituições de profissionais liberais, ONGs etc.) para consolidar uma base democrática, a favor do interesse coletivo. Sem a consolidação dessa base, esses grupos ficarão fragilizados diante do poder hegemônico, que determina o inverno (ou inferno) e a primavera urbana. Refiro-me ao fato de que a democracia urbana jamais será consolidada se que a sociedade civil organizada tenha participação nas decisões quanto à gestão da cidade.
O fato é que há um jogo de cooptação entre gestores e grupos econômicos poderosos em torno de projetos importantes para a cidade, mas sem a participação da coletividade, com prejuízos para a gestão de Salvador, que perde sua capacidade de exercer o controle no processo de ocupação urbana. O fiel desta balança será a consolidação da base democrática, configurada na solidariedade social, que deve ser transformada numa instituição politicamente forte e independente, com o apoio das instituições soberanas (Ministério Público e outros). Talvez assim seja possível conter os processos de ocupação que desequilibram a harmonia urbana, como é o caso do destino das desapropriações em discussão em Salvador. É provável que a partir da existência dessa organização social, a cidadania seja capaz de neutralizar o jogo de interesses que domina a ocupação da cidade. Então, nosso inverno tenebroso um dia, talvez um dia, transforme-se numa primavera resplandecente com o direito a cheiro de alecrim.
Assistimos ao cair das folhas do outono eleitoral, ao anunciar de um inverno transitório de poder, enquanto aguardamos a aurora da primavera, com o renascimento de uma nova ordem urbana, legitimando o direito universal à cidade. Nesse dia, o Esopo não mais pensará no que deverá sair da sua estrondosa montanha, até porque não haverá mais ratos nela – será?
*Arquiteto, urbanista e consultor

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