Martina Low
Já ha algumas semanas, eu observo a cidade de Salvador como socióloga, como teórica do espaço e como norte-européia que leu pilhas de livros, em inglês e alemão, sobre o Brasil e sobre Salvador. Nas minhas pesquisas, eu me esforço para decifrar o código urbano desta cidade. Quer dizer, eu volto o meu olhar para a gramática desta cidade e a forma de empregá-la. O espaço produzido fala não apenas de modas passageiras e ideologias transitórias, mas também, e sempre, de práticas culturais profundamente enraizadas.
O sonho português, por exemplo, dirige o olhar sempre para cima. Primeiro, os portugueses se estabeleceram na cidade alta, o que faz do centro histórico, até hoje, um elemento espacial que, em termos de planejamento, está ligado apenas de forma insuficiente ao resto da cidade. Eles, então, introduzem mais uma modalidade de separação social e espacial que, em muitas colônias africanas, por exemplo, seria impensável.
Os portugueses não dividem as áreas entre zonas de brancos e zonas de negros, mas providenciam uma separação vertical no interior dos prédios. Os escravos da casa vivem nos pavimentos térreos da casa senhorial, enquanto que a família de nobres dá vida aos amplos cômodos nos andares superiores.
Quando eu pergunto às pessoas desta cidade o que elas percebem como sendo o centro ou os centros das cidades, elas mencionam, sobretudo, a Barra e o Iguatemi. O Iguatemi é mais o centro econômico, um ponto de encontro para a classe média. A Barra é, mais intensamente, o lugar de uma atitude urbana diante da vida. O bairro é mais povoado e mais heterogêneo. As opções de lazer mostram-se mais atrativas, e o local é descrito como carregado de identidade. O Pelourinho só é mencionado quando se pede uma informação a respeito.
Sim, trata-se do lugar de sua história, mas os mais velhos, em grande parte, riscaram-no do seu mapa mental. Ele seria, simplesmente, perigoso demais. Os mais jovens freqüentam shows lá, à noite, enfrentando oposição de seus pais.
Nesta cidade existem duas coisas: um êxodo das zonas centrais, uma realização dos desejos consumistas, fora delas e apesar disso, uma idéia de centralidade. Estes novos centros podem ser descritos como lugares da nova globalização, com projetos de prédios de apartamentos e de shoppings centers que podem ser encontrados em qualquer lugar do mundo, mas os velhos centros, que estão ligados à história colonial mais antiga ou mais recente, não estão esquecidos.
O Pelourinho é um destes lugares. Aqui se tentou, com restaurações, destacar o que é próprio da cidade, mas, no fim, terminou-se por criar uma ilha de recuperação urbana. Divididos entre a globalização econômica e a cultura, surgem novos centros e, ao mesmo tempo, a importância cultural local, imaginada como tipicamente baiana, cresce mais do que diminui: música baiana, culinária baiana, tradição baiana.
A tenacidade com que as pessoas de diferentes classes sociais insistem em afirmar que, nesta cidade, o ritmo é dado por um coração negro, parece-me ser indicativa de que existe, no mínimo uma grande tensão entre uma estrutura pragmática de redes de centros, de um lado, e a localização da herança cultural, de outro. Afinal de contas, a história colonial não foi esquecida, apenas o seu foco passou a ser a questão escravista.
A nacionalização, enquanto processo, necessita da construção de uma tradição comum , na qual se juntem, numa mistura, os diversos estrangeiros. Salvador é o lugar que dá garantia a esta construção, ao preço de que a própria cidade fique fortemente entrelaçada no imaginário das raízes afro-brasileiras – tão fortemente quanto esta história é contada por quem está de fora, em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas também na Afro-América e nos guias alemães de viagem.
Eu sustento que a cidade de Salvador deve fornecer aquilo em que o Estado Nacional Brasil deseja acreditar, e que se presta bem a transformar-se em visibilidade internacional, e também turística: ou seja raízes.
* Professora Titular da cátedra de Sociologia do Espaço na Universidadede Darmstadt, Alemanha
Já ha algumas semanas, eu observo a cidade de Salvador como socióloga, como teórica do espaço e como norte-européia que leu pilhas de livros, em inglês e alemão, sobre o Brasil e sobre Salvador. Nas minhas pesquisas, eu me esforço para decifrar o código urbano desta cidade. Quer dizer, eu volto o meu olhar para a gramática desta cidade e a forma de empregá-la. O espaço produzido fala não apenas de modas passageiras e ideologias transitórias, mas também, e sempre, de práticas culturais profundamente enraizadas.
O sonho português, por exemplo, dirige o olhar sempre para cima. Primeiro, os portugueses se estabeleceram na cidade alta, o que faz do centro histórico, até hoje, um elemento espacial que, em termos de planejamento, está ligado apenas de forma insuficiente ao resto da cidade. Eles, então, introduzem mais uma modalidade de separação social e espacial que, em muitas colônias africanas, por exemplo, seria impensável.
Os portugueses não dividem as áreas entre zonas de brancos e zonas de negros, mas providenciam uma separação vertical no interior dos prédios. Os escravos da casa vivem nos pavimentos térreos da casa senhorial, enquanto que a família de nobres dá vida aos amplos cômodos nos andares superiores.
Quando eu pergunto às pessoas desta cidade o que elas percebem como sendo o centro ou os centros das cidades, elas mencionam, sobretudo, a Barra e o Iguatemi. O Iguatemi é mais o centro econômico, um ponto de encontro para a classe média. A Barra é, mais intensamente, o lugar de uma atitude urbana diante da vida. O bairro é mais povoado e mais heterogêneo. As opções de lazer mostram-se mais atrativas, e o local é descrito como carregado de identidade. O Pelourinho só é mencionado quando se pede uma informação a respeito.
Sim, trata-se do lugar de sua história, mas os mais velhos, em grande parte, riscaram-no do seu mapa mental. Ele seria, simplesmente, perigoso demais. Os mais jovens freqüentam shows lá, à noite, enfrentando oposição de seus pais.
Nesta cidade existem duas coisas: um êxodo das zonas centrais, uma realização dos desejos consumistas, fora delas e apesar disso, uma idéia de centralidade. Estes novos centros podem ser descritos como lugares da nova globalização, com projetos de prédios de apartamentos e de shoppings centers que podem ser encontrados em qualquer lugar do mundo, mas os velhos centros, que estão ligados à história colonial mais antiga ou mais recente, não estão esquecidos.
O Pelourinho é um destes lugares. Aqui se tentou, com restaurações, destacar o que é próprio da cidade, mas, no fim, terminou-se por criar uma ilha de recuperação urbana. Divididos entre a globalização econômica e a cultura, surgem novos centros e, ao mesmo tempo, a importância cultural local, imaginada como tipicamente baiana, cresce mais do que diminui: música baiana, culinária baiana, tradição baiana.
A tenacidade com que as pessoas de diferentes classes sociais insistem em afirmar que, nesta cidade, o ritmo é dado por um coração negro, parece-me ser indicativa de que existe, no mínimo uma grande tensão entre uma estrutura pragmática de redes de centros, de um lado, e a localização da herança cultural, de outro. Afinal de contas, a história colonial não foi esquecida, apenas o seu foco passou a ser a questão escravista.
A nacionalização, enquanto processo, necessita da construção de uma tradição comum , na qual se juntem, numa mistura, os diversos estrangeiros. Salvador é o lugar que dá garantia a esta construção, ao preço de que a própria cidade fique fortemente entrelaçada no imaginário das raízes afro-brasileiras – tão fortemente quanto esta história é contada por quem está de fora, em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas também na Afro-América e nos guias alemães de viagem.
Eu sustento que a cidade de Salvador deve fornecer aquilo em que o Estado Nacional Brasil deseja acreditar, e que se presta bem a transformar-se em visibilidade internacional, e também turística: ou seja raízes.
* Professora Titular da cátedra de Sociologia do Espaço na Universidadede Darmstadt, Alemanha
Nenhum comentário:
Postar um comentário