sábado, 2 de outubro de 2010

Trânsito e cidade II


Gil Vicente Tavares *
Em Salvador, as pessoas atravessam em qualquer lugar, correm risco de morte, mas estampam o sorriso esculhambado e faceiro que tanto encanta turistas e folcloristas irresponsáveis, sorriso que devia continuar estampado no rosto mesmo depois de um atropelo. Mas, a partir do momento de um “tá lá um corpo estendido no chão”, o motorista passa a ser o criminoso e o pedestre a vítima. Começam fábulas sobre as irregularidades de velocidade, etc, sobre o motorista; nos casos onde este sequer tem culpa. As culpas dos condutores são discorridas acima.
Outro problema sério decorrente disso é que a cidade se enche de semáforos, que tornam o trânsito lento, devido aos protestos de seguidos atropelos em locais com passarelas. O soteropolitano quer ser esperto, tem preguiça de atravessar uma passarela numa pista de alta velocidade, e ainda protesta se ocorre atropelo. Aí, queimam pneu, põem faixa, gritam, e vencem numa subversão da lógica que é simples; seguir a ordem pra não sofrer com a infração. Mas a irregularidade baiana vence.
Vivemos numa cidade cada dia mais feia. Numa cidade onde as opções de voto são ridículas, políticos desinformados, ignorantes, com discursos prontos sobre segurança, saúde e educação, mas sem propostas efetivas e inteligentes; pra não falar da cultura. Entrevistei três prefeituráveis, há dois anos, e foi uma lástima. Eles não sabiam absolutamente nada sobre cultura e arte em Salvador, nem tampouco sabiam o que fazer com o potencial incrível que essa cidade tem através de seus músicos, atores, artistas plásticos, cineastas, etc.
Mas temos sempre que lembrar que políticos não brotam do chão (se brotassem, seria do esgoto). Eles são cidadãos que têm a mesma atitude que nós todos, soteropolitanos, temos no trânsito. E que refletem, exatamente, a falta de cidadania, de gentileza, de preocupação com o espaço público, com a boa convivência, com o respeito, o desenvolvimento, a civilidade.
Nosso comportamento no trânsito reflete metonimicamente nossa pobreza cidadã. E assim vamos atropelando a possibilidade de uma civilização menos injusta, menos individualista, menos irresponsável. E assim vamos sendo atropelados por políticos que não dão sinal, atravessam fora da faixa, não respeitam o outro, andam lentos na pista de velocidade, e Salvador vai sendo a selva, a Selvador que tanto falo.
*Dramaturgo, escritor e ator

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