Leonardo Campos*
Aos que não conhecem devidamente o gênero axé music e pensam nesta manifestação cultural apenas com ojeriza, o documentário Axé – Canto do Povo de Um Lugar é um didático e bem fundamentado material para promover a reflexão e fazer estes olhares míopes enxergarem as coisas de um modo bastante diferente. O gênero que havia completa 30 anos em 2015 (se considerarmos Luiz Caldas como o marco zero) não havia ganhado uma comemoração na seara audiovisual. Foi pensando nisto que Chico Kertész realizou a produção.
O começo já emociona: a voz over de Ivete Sangalo cantando Baianidade Nagô, canção lançada no álbum Negra, da Banda Mel, em 1991, dá o tom saudosista do filme. “Já pintou verão, calor no coração, a festa vai começar…”. Um misto de riso e emoção se revela nesta abertura, principalmente para quem viveu bem de perto esta história que parece ter entrado em decadência nos últimos anos.
É preciso convicção e entrar num consenso: o carnaval de Salvador não é mais o mesmo, concorda? Cláudia Leitte não exala uma gota de criatividade e parece um mix de Britney Spears com qualquer coisa ruim que Daniela Mercury já tenha feito. Ivete Sangalo é uma cantora competente, carismática aos extremos, mas não entregou nenhuma canção digna de orgulho para os baianos nos últimos anos. A topografia do carnaval não permite muitas modificações de estilo e a festa parece sufocante para os que curtem a folia longe de um dos maiores ícones da segregação carnavalesca: os camarotes. Para quem conhece o carnaval baiano por essas vias, torna-se compreensível uma reflexão de caráter negativo.
Considerado como um dos movimentos musicais mais globalizados do mundo, o gênero carrega muito do sincretismo e da história cultural da Bahia. Sendo assim, o documentário reúne entrevistas e imagens de arquivo, tendo em mira contar o passado, delimitar o marco zero (Luiz Caldas), propostas para o futuro e manutenção do movimento (Saulo Fernandes), sempre reforçando as participações mais importantes dentro deste panorama histórico, tudo do ponto de vista, claro, dos envolvidos na produção.
A tarefa hercúlea do esquemático roteiro, assinado pelo diretor Chico Kertész, em parceria com Jaime Martins, era contar uma história rizomática, que se espalha em nosso mapa cultural histórico repleto de acontecimentos de importante semelhança que atravessaram décadas e contagiaram gerações. Através de uma média de 90 entrevistas, o filme retrata a evolução técnica e artística do gênero axé music, bem como o preconceito de muitos desinformados no que diz respeito a tal estilo. A produção também radiografa com eficiência a relação do gênero com a economia que gravita em torno da indústria do carnaval e do show business baiano, além de traçar um bem fundamentado estudo das “origens” do gênero.
A produção, que levou dois anos para ficar pronta, graças ao nosso sistema burocrático de direitos autorais, traz depoimentos de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Ivete Sangalo, Daniela Mercury, Saulo Fernandes, Vovô do Ilê Ayê, Netinho, Beto Jamaica, Claudia Leitte, Luís Caldas, Bell Marques, Ricardo Chaves, Sarajane, Márcia Short, Tonho Matéria, dentre outros artistas locais, bem como empresários, produtores, executivos, radialistas e alguns compositores.
Neste processo, os artistas mais importantes recebem os seus devidos reconhecimentos: Luiz Caldas apontado como o responsável por sedimentar os teclados e as guitarras elétricas; Gerônimo por mesclar salsa, merengue e ritmos latinos ao candomblé; as bandas Asa de Águia e Chiclete com Banana por arrastarem multidões; o Araketu por enfatizar o poder do tamborim no bojo do baticum; o grupo Olodum e a sua mundialização ao dar o devido tratamento ao samba-reggae, algo que causou interesse em artistas como Michael Jackson e Paul Simon; as bandas Mel e Reflexu’s por embalarem os blocos afros com o ritmo pop; Carlinhos Brown e a sua competência como artista; as coreografias com pitadas de axé e sensualidade do É o Tchan, espécie de precursor de grupos como Terra Samba, Harmonia do Samba e Psirico; Ivete Sangalo, apontada como o fenômeno mais importante pós-apogeu; e Daniela Mercury, a rainha do Axé, a “branca mais pretinha da Bahia”, responsável por internacionalizar o gênero e fundir elementos do pop e da MPB.
Nesta radiografia somos relembrados do emocionante show de Daniela Mercury no MASP, um evento que sacudiu, literalmente, as estruturas do museu.
Há também os relatos da primeira apresentação de Ivete Sangalo na Banda Eva, bem como a sua saída, retratada com bastante emoção pelas imagens de arquivo; o sucesso do Gera Samba, logo depois transformado em É o Tchan, grupo musical que apesar de aparentemente fugaz, durou bastante e mesclou com eficiência elementos do samba, do pagode e de alguns outros ritmos de matriz africana.
Há também os relatos da primeira apresentação de Ivete Sangalo na Banda Eva, bem como a sua saída, retratada com bastante emoção pelas imagens de arquivo; o sucesso do Gera Samba, logo depois transformado em É o Tchan, grupo musical que apesar de aparentemente fugaz, durou bastante e mesclou com eficiência elementos do samba, do pagode e de alguns outros ritmos de matriz africana.
Os importantes depoimentos de Caetano Veloso e Gilberto Gil, artistas que simpatizam com as manifestações culturais oriundas do gênero axé music, surgem como responsáveis por referenciar os artistas de maior destaque. A dupla reconhecida mundialmente por seus trabalhos há décadas, verdadeiros guardiões da cultura, apontam e analisam alguns destaques do cânone musical do gênero, alocados com eficiência na montagem do documentário.
Será que por conta da burocracia que transformou o processo de produção de seis meses para dois anos, Margareth Meneses tenha ficado sem a sua trajetória apresentada? E Cid Guerreiro, que sequer foi citado? Carla Visi também não dá as caras. A aparição de Armandinho é quase nula. Estas dúvidas ficam no ar, mas o deleite (sem trocadilhos intencionais) ficou por conta da análise de Cláudia Leitte, uma celebridade que apesar de aparecer muito bem em alguns depoimentos, tem o merecido tratamento: é apontada como uma artista com star quality, alguém que possui a capacidade de atrair a audiência, mas que artisticamente representa apenas um mero produto desta indústria tão ampla. Convenhamos, uma das maiores verdades do documentário. A moça é linda e capaz de se sair bem ao microfone, mas infelizmente tem péssima presença de palco, carisma zero e retórica pobre, algo que nos deixa com a difícil incumbência de informa-la, com muito pesar, sobre a sua importância quase nula para a nossa história cultural.
Das imagens de arquivo destacam-se as aparições de artistas nos programas televisivos, principalmente o de Chacrinha, apresentador que inteligentemente aumentava a sua audiência ao levar os sucessos que estouravam na Bahia, e por tabela, numa relação mútua, promovia a carreira destes artistas e os alçavam para os interesses comerciais nacionais.
Houve quem reclamasse da ausência do povo nos depoimentos, bem como da abordagem de questões sociais. O cineasta reforçou, durante entrevistas, que não era o seu foco. No entanto, para o espectador cidadão, não apenas os que vivem de perto a realidade do carnaval de Salvador, mas as pessoas que acompanham a mídia e inserem-se como entes reflexivos no bojo dos acontecimentos cotidianos nacionais sabem que esta questão está latente no documentário, permeando cada depoimento e imagem retratada no eficiente exercício de revisionismo histórico do roteiro.
“É cada um por si e Deus pelo axé”, sintetiza Netinho, aparentemente ainda abalado pelos acontecimentos com a sua saúde, destino trágico que o tirou do mapa há alguns anos. De acordo com o documentário, nos anos 2000 a coisa perdeu o rumo. E é neste bloco que há o maior espaço para algumas alfinetadas. O que sobrevive atualmente é o esquema dos blocos e a ganância dos empresários (óbvia), somada a desunião de artistas locais, questões que parecem ter minado um movimento de caráter bastante popular, diferente da atual segregação que toma conta da capital baiana no mês de fevereiro e transforma tudo numa comemoração da “estratificação social de cada dia”.
Esta denúncia, por sua vez, nem é tão contemporânea. Desde os anos 1980 alguns blocos de carnaval exigiam fotografia e comprovante de residência dos foliões, como estratégia de barrar negros e pessoas pobres, afirmou o professor Paulo Miguez, do IHAC (Instituto de Humanidades da Universidade Federal da Bahia). O intelectual defende que os blocos afros, atualmente relegados apenas ao circuito Batatinha, de pouca visibilidade, devem ser apoiados com base em políticas culturais. Esta é apenas uma das polêmicas. De acordo com Alberto Pitta, presidente da Liga dos Blocos Afros, “o bolo que criamos cresceu, mas nós ganhamos a menor fatia”. O profissional aponta que existe a necessidade de democratizar a festa.
Há, também, como reflexão ausente, mas que tangencia a história, a questão dos cordeiros. No livro Trama dos Tambores, a autora dedica um capítulo a simbologia destes profissionais temporários que assumem o posto de guardiões das paredes invisíveis que segregam o carnaval de Salvador, manifestação máxima do gênero axé music. Apesar destas cobranças por parte das reflexões sobre o documentário que circula nas redes sociais e em algumas críticas de cunho autorizado (publicadas por profissionais da crítica cultural), não é preciso refletir em demasia para compreender que mesmo tangenciando o filme, seriam mais bem acopladas em um documentário sobre a história do carnaval. Estamos tratando, especificamente, do gênero axé music. O carnaval é algo anterior a este movimento, vale ressaltar, e já segregava muito antes do apogeu de artistas como Ivete Sangalo e Daniela Mercury.
De maneira circular a produção amarra bem as suas pontas. Ao hastear a bandeira de Luís Caldas no “monte do marco zero” do gênero, aponta o carismático Saulo Fernandes como uma promessa para o futuro e encerra o filme com os dois cantando Raiz de todo bem, numa apresentação bem calculada para o desfecho desta história contada em detalhes.
Axé – O Canto do Povo de Um Lugar tinha três horas e meia no primeiro corte. Foi uma tarefa árdua enxugar para os 110 minutos finais, afirmou Kertész. De fato o tema é amplo e até mesmo a linha do tempo cheia de retrospectivas, empregada com muita elegância, não conseguiu dar conta de uma história tão rica. Ainda nas palavras do cineasta, foi “apenas um recorte”. E esta consciência é que faz do filme algo com maior valor, pois circunda todo o projeto a sensação de paixão, segurança na abordagem e ânsia em contar uma história muito relevante para o patrimônio cultural brasileiro.
Como estamos diante da análise de um gênero internacionalizado, é possível que a produção alcance o merecido sucesso em terras estrangeiras. Em breve o filme vai ser lançado em Nova York e em Londres, e sem dúvida, circular por outros países e ganhar do devido reconhecimento. Os produtores de documentários, principalmente aqui no Brasil, um gênero cinematográfico quase diletante, haja vista o seu potencial fraquíssimo no que tange aos aspectos mercadológicos, deveriam buscar em Axé – Canto do Povo de Um Lugar a inspiração para contar as suas histórias, pois é raro encontrar uma produção capaz de contar uma história tão complexa de maneira atraente e diplomática.
“Sou apaixonado por documentários e assisto bastante”, afirmou o cineasta. “Quando você faz um documentário no Brasil, sabe que o público não é tão grande”, alegou Kertész, ciente da sua realidade. O realizador sabe que o filme pode não render muito por aqui, mas convenhamos, pode ser a produção que o coloque no mapa. E dentro deste território, basta aguardar qual será a próxima história que este cineasta iniciante tem para nos contar.
Axé – Canto do Povo de um Lugar – Brasil /2017
Direção: Chico Kertész
Direção: Chico Kertész
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