Oliveiros Guanais*
Oitenta e cinco ou noventa anos? Quem sabe? Mas a cabeça de
Isaura, ou Zara, está boa. Zara é a mãe preta de minha mulher e de algumas de
minhas cunhadas e de vários dos filhos
destas. Mas não é mãe preta por ter dado leite, isso não. É mãe preta porque cuidou delas e deles,
deu-lhes apoio que só mãe sabe dar, contava histórias quando eram pequeninos e
assim por diante.
Todos cresceram, ela envelheceu. Mas ficou como mãe, embora
morando com a mais velha de minhas cunhadas, porque foi esta que ela acompanhou
logo após o casamento, e cuidou dos filhos como cuidara da mãe.
A vida deu-lhe retribuição. Enquanto forte e podendo
trabalhar, foi de grande ajuda em todos os lugares em que estava. Nos lugares da
família que se tornou a sua. Mas
envelheceu, teve problemas de saúde, superou-os, ficando apenas com dois: um
exagerado
valguismo que torna
as suas pernas em forma de arco, dificultando seu andar, e a velhice que chegou
(“senectus ipse morbus est”). Hoje não tem condições de fazer nada, e precisa
de todos os cuidados para manter-se firme no andar. Parece também que não
enxerga direito. Mas ouve bem.
Ela tem três tesouros, além do amor das pessoas de quem foi
mãe.
O primeiro tesouro é um radinho de pilha, que passa o dia
ligado e ela atenta , ouvindo todas as notícias da estação de sua preferência.
Termina informada de tudo, porque é perceptiva e tem memória razoável.
Mas nas ondas do radinho o que enche sua alma, de alegria ou
de tristeza, é o Esporte Clube Bahia, de
quem é torcedora apaixonada. Pelo Bahia acende vela em dias de jogo,
preocupando os que zelam por ela,
temerosos de que um incêndio se instale na casa. O Bahia perde, perde sempre,
apesar de ter sido de longe, em tempos idos, o melhor time da Bahia, o temível
“esquadrão de aço”. E Zara fica triste, muito triste mas cheia de esperança nos
jogos que virão. E eles vêm, e o Bahia perde de novo, e Zara sofre, sofre
calada, mas continúa com um pacote de velas para serem acesas nos jogos futuros
do seu time.
Falta falar no terceiro tesouro de Isaura: um papagaio. Estivemos
juntos agora,seis dias de carnaval baiano- porque essa é a duração do carnaval
da Bahia- distantes da confusão da cidade. Zara foi e o papagaio também, é
claro. Logo no segundo dia ela começou a perguntar pelo louro, está bem, Zara,
está bem, mas eu percebi que ela não estava bem, estava contida, triste,
faltando algo naqueles momentos. E foi aí que me veio um estalo: ela precisa
ficar junto do louro. Arrumei prego e martelo e fiz nova casa para o louro, em
lugar arejado, de vista bonita para o verde do mato e do mar. Será que papagaio
gosta de ver o mar? Não sei. Mas logo que foi instalado em sua nova moradia,
tendo junto de si a sua dona que ficou de uma hora para outra deslumbrada, o
papagaio começou a tagarelar, valendo-se de todos os seus recursos verbais,
batendo as asas e comendo sua razão de semente de girassol, para alegria da sua
dona que falava mais que o louro: e aí, louro, louro ta é gostando, né, aqui
está bom, não é louro?,.
E a partir dessa mudança de endereço, o louro e sua dona
passaram a ter uma alegria que não existia antes. E com um recurso tão simples, demos nova vida ao louro e a sua
dona , que já tem tão pouco de que se alegrar nos seus noventa anos: um radinho
de pilha, um papagaio, e o amor por um time de futebol que já não ganha mais.
*Oliveiros Guanais de Aguiar, nascido em Caetite , falecido em Salvador , foi presidente da UNE e Médico Anestesista.
**Isaura Conceição dos Santos completa hoje 99 anos
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