Gil Vicente Tavares*
A religião surgiu como forma de tentar compreender, aceitar ou lidar com o imponderável, o incontrolável, o inexplicável. Por isso, as primeiras religiões eram politeístas e mantinham uma relação direta com a natureza.. A natureza passou a ser explicada e os olhos voltaram-se ao homem. Ao indivíduo. Os deuses passaram a ser Deus, e o que antes era representação da natureza, tornou-se ao mesmo tempo algo que tinha a ver com alma, espírito, mas também a ver com o mais amplo, misterioso e inefável. Quanto mais a ciência avançava, mais dilatava-se a noção de Deus. Chegou-se ao big bang e logo perguntou-se: e antes do big bang? Nietzsche anunciou a morte de Deus num momento onde as questões já deveriam ser outras. Infelizmente, a religião pautou o século XIX, o XX e ainda é marcante e presente no século XXI. Com isso, as matanças, vinganças, disputas, perseguições, preconceitos e diásporas continuam, pautadas pelas crenças, dogmas e regras
Alguns homens, ao tentar um contato com o inefável, com o divino, acabaram por criar a religião. Outros, a arte. A arte é uma forma sofisticada e libertária de religião. Transcende-se sem dogmas, eleva-se sem moralismos, chega-se a um estado de graça sem crenças.
Sempre frequentei – e continuo – frequentando o candomblé. Sua sabedoria selvagem, voltando a Nietzsche, traz uma relação genuína e pura com a natureza, há, por trás de seu primitivismo, algo que mexe com nosso lado bicho, nosso lado barro, nosso lado fogo, água, vento. Por isso nada mais belo que a relação da energia da natureza com a natureza de cada um. Como na astrologia, somos consagrados a um elemento, a uma energia e sinergia que traduz nossa forma de ser, e ajuda a compreender nosso estar no mundo.
O transe, no candomblé, visto como uma antropoformização das energias da natureza, parece-me muito mais com o que Pierre Verger dizia. É algo que vem de dentro pra fora. Ninguém “baixa” Iansã, Oxum ou Xangô. Chega-se a um estado de transe, de epifania, de concentração de energia, alma, espírito e corpo em estado bruto, denso e visceral.
A arte, a sofisticação da religião, transcende a necessidade de relação com algo que está lá fora, subverte essa ideia de contato com o inefável, e percebe – mais uma vez Nietzsche – que é melhor sermos deuses nós mesmos. A salvação não está no que não se compreende, a enlevação não está no que nos é superior, a salvação e a enlevação estão em compreender-se, elevar-se acima do que o homem insistiu em ser, ao longo dos séculos. O homem é algo que precisa ser superado, e o filósofo alemão não desgruda do meu texto.
á que é assim, vou escancarar logo dizendo que não é possível acreditar num Deus que não saiba dançar, e “quem manda é a deusa música”, dizia o mestre Gil. E foi justamente o que pude ver, hoje, no palco do Teatro Castro Alves, na apresentação de Yo-Yo Ma e Kathryn Stott.
Ma entrou no palco arrumado, aquela simpática cara oriental com sorriso simples, cabelo lisos e arrumados e deferência para com a plateia. Sentou, começou a tocar Stravinsky e seu cabelo ainda estava impecável, um divertimento, sorriso nos lábios, tudo comportado, som discreto no imenso Teatro Castro Alves e uma agradável noite de concerto.
Durou pouco tudo isso. Algo começava a destoar, já no Stravinsky, e quando Ma começou a entrar na alma brasileira de Villa-Lobos a coisa foi mudando de figura. A coisa e o rosto, o corpo do violoncelista.
Oblivion trouxe-me o esquecimento da música como cerimônia social, com pessoas em seus bons trajes, tossindo, a luz acesa do teatro mostrando que tudo era uma coisa só. De repente, o violoncelo de Ma me puxou pra outro lugar. E assim a dança negra de Guarnieri já era o transe do candomblé em sua forma sofisticada. O músico batia o pé, torcia o ombro, e o rosto sofria, adensava-se, contorcia-se junto ao ritmo, à melodia, às cadências, compassos, respirações. A essa altura, os braços da pianista já bailavam e alguma coisa a mais acontecia naquele teatro. Seguiu-se a Andaluzia de Manuel de Falla e todas as cores ciganas, mouriscas e telúricas inundaram o palco que parecia.
De nada adiantou o intervalo. Yo-Yo Ma voltou com Stott para tocar Messiaen, o movimentoLouvor à eternidade de Jesus, de seu Quarteto para o fim dos tempos, escrito quando da prisão do compositor pelos nazistas, durante a Segunda Guerra Mundial.
“Este velho santo [...] ainda não soube que Deus está morto”, pensou o violoncelo nietzschiano de Yo-Yo Ma e sofreu com ele o desespero de uma humanidade massacrada pela condução de homens que ainda precisavam, e precisam, escorar-se na ideia de um Deus – o meu, certo, o dele, errado – e usá-lo como arma e escudo para o outro e para si
O longo, repetido e insistente choro de Messiaen foi invadindo as paredes do TCA, meus poros, meus sentidos, minha alma e espírito, longe de Deus e deuses, e fui entrando no transe súbito daquele músico único, mágico príncipe sólido e pássaro: construção e demolição, contradição e tradição num conflito máximo.
A última peça do concerto era pra ser uma sonata de Brahms que eu conhecia para violino e tinha tocada por ninguém menos que Isaac Stern. Mas foi outro Brahms que chegou até mim. Proposital, ou não – e a arte não tem nem deve ter propósito, e por isso é ela mesma mais que Deus e homens –, Yo-Yo Ma tecia seu repertório pondo, impondo e compondo Brahms depois do conflito espiritual de Messiaen, entre o eterno e o fim dos seus próprios títulos.
A ex-sonata para violino virou uma densa, tensa e intensa peça pra violoncelo e piano, e eu ouvia Johannes Brahms como nunca antes. Cabelos bagunçados, batidas de pé, deslizar de pernas, pequenos saltos da cadeira, e Yo-Yo Ma estava em transe. Ele, música, instrumento e resto, eram tudo uma coisa só. Entender o princípio de tudo, o primeiro grito, o primeiro gesto, as primeiras moléculas se encontrando lá atrás; a vida surge quando tudo torna-se uma coisa só e explode. Ribombam ainda os sons desse estouro que se espalha em estilhaços de som, de tessitura, e os homens, que não se contentam em esperar, louvar, inventar e crer, juntam seus cacos de existência em notas musicais.
Yo-Yo Ma sabe disso, mesmo sem saber. Poucos momentos eu tive onde a arte estava em seu verdadeiro tamanho: maior que a vida, fora dela e ao mesmo tempo tão dentro de mim, pulsando como se o Deus que dormisse em mim acreditasse que eu existo. Além do comum, do vulgar, do dia-a-dia que se arrasta jogando uma pá de poeira sobre a poesia da vida. Mas a arte está lá, pra quem quiser. Na poesia da vida, onde há vida na poesia, onde há o transe que não busca o divino, mas mostra o quão divino podemos ser.
Religar o homem a si. Descobrir-se maior que o universo, porque o universo é aqui. Na música e na dança que ainda vão se transformar em silêncio. Silêncio eterno que nem Deus nem a música hão de iluminar para nós o que há de ser. Enquanto não chega esse momento, oremos através da arte.
Assim falou Yo-Yo Ma
*Gil Vicente Tavares nasceu em Salvador, Bahia, em 26 de agosto de 1977. Gradua-se na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 1999. Sua peça de formatura, "Quarteto", de Heiner Müller, rende-lhe o prêmio de diretor revelação.
Após retornar de um intercâmbio com a Cena Lusófona, em Portugal, passa a encenar textos como: "Antes da Reforma", de Bernhard, e "O Despertar da Primavera", de Wedekind, com grandes atores da Bahia
Colabora no roteiro do filme "Cidade Baixa", de Sérgio Machado, e foi coautor da comédia musical "Vixe Maria, Deus e o Diabo na Bahia", sucesso que ficou mais de quatro anos em cartaz com mais de 200 mil espectadores.
Em 2006, vai a Roma falar de sua obra e assistir à leitura encenada de duas peças suas: "Os Javalis" e "Os Amantes II". Funda, então, o grupo Teatro NU com Jussilene Santana e estréia, neste mesmo ano, sua peça "Os Amantes II".
Em 2008, o Teatro NU estreia "Os Javalis", novamente sob sua direção. O último espetáculo do grupo foi o "Teatro NU Cinema", que levou peças curtas de Tchecov à Sala de Arte da UFBA no primeiro semestre de 2009.
Junto ao Teatro NU, organizou eventos voltados pra história do teatro baiano e pra dramaturgia contemporânea, trazendo nomes como Ramón Griffero (Chile) e Darío Facal (Espanha). Sempre fomentando discussões sobre teatro, drama e sociedade .
Concluiu o doutorado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (UFBA), onde pesquisou a dramaturgia, a herança do Absurdo e seus vestígios no drama contemporâneo.
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