Entre as polêmicas declarações do ex-prefeito de Salvador, João Henrique, quase nenhuma foi tão criticada, chegando mesmo à beira de ser ridicularizada, como a afirmação, no início de 2010, que as concessionárias, que vendiam sem qualquer limite carros novos na cidade, eram as principais culpadas pelos congestionamentos. É claro que indicar o final do processo que origina o problema como o problema em si é uma atitude que não se espera de político algum, mas ao localizar na venda descontrolada de automóveis uma das razões para os enlouquecedores engarrafamentos, talvez ele tenha tido uma de suas declarações mais politicamente vigorosas, capaz de desestabilizar planos importantes do governo federal.
A verdade é que, graças à infeliz e irresponsável decisão política de apoiar boa parte do crescimento econômico do país durante a última década no consumo irrestrito de automóveis particulares, sem que nem de longe houvesse investimento em infraestrutura viária e transporte coletivo de massa que acompanhasse a explosão do número de veículos individuais, as grandes cidades brasileiras estão imobilizadas.
Como consequência desta decisão, podemos hoje experimentar fisicamente a abstrata noção de que um grupo, um coletivo, uma sociedade sempre será algo mais que a soma de seus indivíduos: a terrível agonia cotidiana das horas perdidas por milhões de pessoas em engarrafamentos inescapáveis é a própria vivência da impossibilidade de uma sociedade onde o direito do indivíduo, especialmente funcionalizado no papel de consumidor, é absurdamente hegemônico diante do direito da coletividade: porque cada um possui um carro, ninguém mais é capaz de se locomover. O direito de ir e vir de cada um, dentro dos atuais espaços urbanizados brasileiros, aniquila o direito de ir e vir de todos.
Diferente do Rio ou São Paulo, onde, ainda que precariamente, existem linhas de trens e de metrô em algo que pode ser entendido mais ou menos como um sistema de transporte coletivo, Salvador padece de maneira extrema diante da superpopulação de automóveis particulares, uma vez que o único meio de transporte coletivo, o ônibus, precisa disputar com a massa de carros o mesmo espaço de deslocamento.
E é preciso que se diga que a ideia de uma superpopulação de automóveis particulares é bastante relativa: ela só pode ser compreendida se considerarmos a altíssima densidade populacional, a antiga e ineficiente rede de ruas e avenidas, o desmando da gestão do uso do solo permitindo em todas as áreas altas taxas de utilização, e a falta de articulação efetiva com as cidades vizinhas em termos de planejamento territorial, pois a cidade ainda está distante de ter os padrões da relação do número de automóveis por habitante comuns nas cidades do mundo de consumo pleno. Em outras palavras: sendo mantida a decisão do governo nacional do consumo desenfreado de automóveis como política desenvolvimentista, ainda teríamos que contar com dezenas de milhares de automóveis a mais na capital baiana.
Vários artigos já foram escritos nos últimos meses e anos sobre a mobilidade urbana nas cidades brasileiras e em Salvador, e em todos eles é evidente a necessidade de se pensar um sistema articulado que leve em consideração as diferentes velocidades e modos de deslocamento, ligados aos diferentes meios de transporte, a geografia e o desenho urbano da ocupação territorial, as necessidades da população, a busca por uma cidade menos poluída pelo tráfego, entre outras variáveis, em algo que implica necessariamente na execução prática de um verdadeiro e sério planejamento urbano e regional.
Estamos diante então de um problema que não se resolverá em curto prazo, acrescido de dois agravantes: o primeiro deles, a recusa dos atuais governos locais em assumir a tarefa do planejamento urbano, entregando às empresas a gestão e desenho das cidades; as consequências nefastas deste recuo são incontroláveis, especialmente na completa desarticulação das propostas como uma ideia de todo que correspondesse à cidade, o que vale, por exemplo, tanto para a ponte de Itaparica, como Paulo Ormindo vem demonstrando incansavelmente, como para a chamada linha 2 do metrô; o segundo deles é a própria experiência da construção da linha 1 do metrô, o “Ferrorama do Bonocô”: diante de tal obra, motivo de piada nacional, monstruosidade orçamentária, paisagística, urbana e arquitetônica, como fazer a população acreditar em alguma medida a longo prazo? E, principalmente, como fazer para agir em curto prazo?
Aprendendo de São Paulo
Maior cidade do país, nenhuma outra vem tentando resolver o problema crônico da imobilidade como São Paulo. Mesmo com os investimentos nas linhas de metrô e trem, em uma rede ainda reduzida considerando o tamanho da região metropolitana, ali é possível perceber como os esforços no passado recente de controlar o trânsito de veículos particulares tiveram um impacto limitado, como foi o caso do rodízio de veículos: quem pôde, comprou outro carro.
A recente proibição do trânsito de veículos de passeio na região da Rua 13 de maio, em Santo Amaro, que tem como objetivo “melhorar o desempenho do transporte coletivo na região”, parece ser uma resposta efetiva ao dilema do direito coletivo versus o direito individual exposto no início deste artigo, mas é na verdade uma tentativa de evitar o pedágio urbano, algo extremamente rejeitado pela população e por isso difícil de ser implementado por qualquer político: o prognóstico é de uma derrota segura nas eleições seguintes à implementação de tal mecanismo.
Incluído na recente lei nacional que determina a política de mobilidade urbana, o pedágio urbano possui em São Paulo um amadurecimento que remete a duas décadas de inciativas políticas nunca efetivadas. O atual modelo, aprovado pela câmara da capital paulista e apoiado em estudos do arquiteto Cândido Malta, prevê a cobrança do equivalente a U$ 2,00 para quem entre no limite definido como centro expandido – que corresponde logicamente à área melhor servida por metrô e trens –, e tem como referência a experiência internacional de cidades como Londres, Cingapura ou Oslo, sendo, em todas elas, o valor arrecadado destinado à melhoria do sistema de transporte coletivo. Para que seja efetivado, a implantação de um pedágio urbano pressupõe um incremento imediato de transporte púbico, em geral, conseguido com uma oferta maior de ônibus.
Entretanto, se comparada a estas cidades, a proposta de São Paulo diferencia-se pelo tamanho da área coberta pelo pedágio: tanto em termos absolutos como na proporção com o restante da área urbanizada, torna-se evidente que o problema nas cidades brasileiras assume outra dimensão e outras características.
Salvador: Pedágio überall e transparente
Restringir uma área sob pedágio em Salvador teria ainda menos efeitos: graças à sua geografia, malha viária e desordem em várias escalas urbanísticas, a imobilidade tornou-se genérica, e um único acidente envolvendo um veículo maior hoje é capaz de paralisar toda a cidade. Daí que a solução em curto prazo para a imobilidade urbana em Salvador dificilmente escapará de um pedágio sobre toda a área do município para automóveis de passeio. Então a crítica que vem sendo feita à Linha Viva, que irá ligar o Acesso Norte à Estrada do Cia, em traçado paralelo à Avenida Paralela, contra o fato de ela estar sendo planejada para ter vinte pedágios, mudaria de foco: o problema não reside nos pedágios propostos para a chamada Linha Viva, senão na ausência de cobrança de pedágio pelo uso de toda e qualquer rua do município por automóvel de passeio.
Utilizando-se do mesmo mecanismo previsto para a cobrança de pedágio em São Paulo, todos os automóveis em circulação na cidade receberiam um chip que permitiria fazer o registro de uso do veículo através da localização via GPS. Como é impraticável a ideia de uma limitação espacial para a cobrança do pedágio, a melhor maneira de cobrá-lo seria através da quantidade de quilômetros rodados diariamente. Sendo assim, poder-se-ia estipular um valor X para os primeiros 10 quilômetros rodados, um valor X/2 para os seguintes 10 quilômetros, depois um valor x/4 para os próximos 20 quilômetros, seguindo em uma proporção até chegar a uma determinada quilometragem diária, a ser estabelecida em função da média de deslocamentos de quem necessita do veículo como instrumento de trabalho, a partir da qual não se cobraria mais pelo pedágio, podendo inclusive haver uma redução do valor acumulado para quem ultrapassasse este limite.
O valor X, referente à taxa cobrada por quilômetro rodado nos primeiros dez quilômetros de uso diário do automóvel, deve ser calculado de maneira a incentivar o uso do transporte público, a carona solidária para o trabalho e para o transporte de crianças à escola, e reduzir deslocamentos esporádicos e não planejados. É no estabelecimento deste valor que poderá ser medido o impacto sobre o trânsito na cidade.
Entretanto, apenas este aspecto técnico não resolveria o problema político: diante do grande descrédito da população frente ao escândalo referente às verbas “destinadas” aos 13 anos de construção do Ferrorama, como fazer com que a população que possui automóvel aceite mais esta tributação?
A única saída seria a criação de uma conta pública transparente que arrecadasse exclusivamente este pedágio urbano e cujo montante depositado deveria estar voltado somente para os investimentos no sistema de transporte coletivo, onde cada cidadão pudesse acompanhar pela internet não somente o total arrecadado a cada dia, como também e principalmente o quanto foi cobrado dele individualmente. Tecnologia para isso já existe: basta que se adapte um software semelhante aos aplicativos que cada um pode ter em seu celular para acompanhamento de exercícios físicos. Dotado de um GPS, o aparelho pode registrar o percurso exato de cada automóvel, medindo-o, o que pode ser então verificado em qualquer celular ou computador pessoal ao final de cada dia, indicando então o cálculo de pedágio arrecadado para aquele período de 24 horas.
Ao tornar esta conta pública exclusiva para a arrecadação do pedágio urbano, seria possível eliminar a caixa preta onde se perdem os impostos em corrupção e desvio de dinheiro. A transparência do montante arrecadado para este fim serviria de base para uma ação transparente não somente no momento da contratação de todos os serviços para a instalação de um verdadeiro sistema de transporte coletivo, como também para a própria definição do modelo a ser escolhido: uma vez o cidadão envolvido com o mecanismo de controle do que ele pagará como pedágio, consequentemente ele estará interessado em participar das decisões de como o dinheiro será aplicado.
Em curto prazo diminuiríamos substancialmente o número de automóveis de passeio nas ruas e em médio prazo haveria uma perspectiva concreta de um sistema de transporte de massas definido com a participação dos cidadãos. A culpa não é mesmo das concessionárias, mas se uma cidade como Salvador quiser realmente melhorar sua condição de imobilidade cotidiana, terá sim que enfrentar o governo federal, questionando um dos pilares do seu modelo de crescimento econômico. Quem vai topar esta briga?
*Mestre em Arquitetura pela TU-Vienna e professor na UFBA, e trabalha sobre Arquitetura do Século XX e Contemporânea.
*Mestre em Arquitetura pela TU-Vienna e professor na UFBA, e trabalha sobre Arquitetura do Século XX e Contemporânea.
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