Gil Vicente Tavares*
Salvador nunca fez muita questão de perder seu status de província. Alma oligarca, pensamento pequeno, e uma selvagem ânsia predatória de sugar, espremer até o talo tudo que nessa terra dá em benefício próprio, sem pensar em qualquer crescimento civilizatório, cultural e urbano.
Parece que ainda preservamos o espírito de nossos primeiros colonizadores. Terra boa para se tirar proveito, para enriquecer. Terra de famílias mandantes, dominantes, donas do poder, das leis, da matéria prima, dos cargos superiores. Eterna capitania hereditária.
O modelo se esgotou. Alguns acontecimentos recentes evidenciam que a conduta por vezes ilícita, na maioria das vezes autoritária, sempre excludente dos donos do poder não surte mais o mesmo efeito de antes.
A modernização, a tecnologia, uma ainda inconsistente, mas importante, transparência das ações, uma quebra das hegemonias e uma frágil, contudo evidente, democracia, tudo isso tem exposto um esgotado modelo de gestão.
Na política, onde as oligarquias enfraqueceram-se, onde a redemocratização do país pós-ditadura vem fortalecendo-se aos poucos, onde a imprensa mais livre e diversa, a internet mais ágil e opinativa, independente, as consciências da população mais amadurecidas são pedras no sapato, o rei mostrou-se nu.
Contratos ilícitos, coleguismos, despotismos e nepotismos, malversação do erário, desvios de verba, contratos superfaturados, propinas, todo esse sistema – que ainda é a mola mestra da política – além de não funcionar tão impunemente quanto antes, expõe mais facilmente a ineficiência dos gestores públicos.
Salvador cresceu – muito, mas muito mais do que devia – e continua – muito, mas muito mais do que devia – crescendo desenfreadamente. Não há mais como a cidade ser uma mina de dinheiro e poder pra determinadas famílias, clãs, grupos políticos. Felizmente, a forma vampiresca com que os políticos sugavam os recursos, mandavam e desmandavam nas leis, nas terras, na imprensa e no que mais ocorresse, não tem mais como funcionar a pleno vapor.
Ainda se rouba muito. Ainda se favorece muito certas empreiteiras, certos empresários. Ainda há muito desvio de verba, obras eleitoreiras e pouco funcionais, aparelhamento do estado e do município, jogos de interesse e decisões políticas que pouco levam em conta o bem estar e a resolução de problemas da cidade. Contudo, fica, a cada dia, mais evidente o descaso e a inoperância das esferas públicas.
Salvador está destruída. Sua urbanização é vexatória, cidade esburacada, sem passeios, sem árvores, entupida de viadutos que não desafogam o trânsito, transporte público aquém de uma cidade de 500 mil habitantes, quiçá de uma com mais de 3 milhões, enfim, Salvador está um caos. Claramente, chegamos a essa desgraça por conta de um modelo de gestão predatório, fisiologista, corrupto e que pouco se preocupa com o cidadão, seus direitos, sua educação, sua cultura, sua vivência e convivência.
Por enquanto – e não creio que cedo conseguiremos dar o pulo do gato – os políticos ainda tentam adequar sua conduta espúria a uma razoável administração da cidade. Crescemos, os problemas multiplicaram-se e não dá mais pra ficar naquela de poucos se locupletando do poder enquanto a maioria chafurda na lama. Salvador virou cidade grande, ao menos no número populacional e nos problemas. Não é mais uma pequena cidade onde havia um centro rico e cuidado, moradia dos donos daqui, e uma periferia abandonada de ex-escravos, índios, degredados, miseráveis e todo o tipo de desgraça que poderia atrapalhar a linda e elegante capital da Bahia. A fratura está exposta, outros nichos sociais ganharam voz, voto e direitos e é preciso fazer algo, ao menos o mínimo por outros que não os de sempre.
Esse modelo destrutivo também esgotou-se noutras áreas, de maneiras parecidas, mas com consequências um pouco diferentes.
Vejamos a indústria do carnaval, ou a indústria do Axé, como muitos chamam. Empresários espertos, ligados num acontecimento que florescia no final dos anos 70, começaram a perceber que poderiam se locupletar dos talentos que surgiam de uma nova maneira de se fazer música.
Rapidamente, investiu-se de forma predatória e voraz numa estrutura de blocos, micaretas, bandas, artistas que dominaram o Brasil, dando um fôlego novo a um país dominado pelos sertanejos da era Sarney.
Talento de sobra, inventividade, boas músicas, novos ritmos, mistura de estilos e crenças, cores e danças, tudo isso fez do nosso carnaval algo especial, forte, significativo e – como disse Ildásio Tavares, num artigo seu – a Bahia fazia um novo movimento musical, depois de anos sem criatividade em nossa indústria fonográfica, oprimida pela imitação e redenção à cultura estadunidense, por um lado, e daquele novo sertanejo, por outro.
Contudo, paralelo a isso, empresários tentavam, em sua maioria, e de forma vampiresca, sugar ao máximo os artistas, os blocos, depois camarotes, etc., numa ânsia de enriquecer, dominar e mandar em tudo, sendo déspotas culturais da cidade. Talentos começaram a ser descartados em busca de grana mais fácil, menos problema e mais comando, bandas engessadas em modelos de sucesso começaram a surgir, grupelhos tentando ser donos de tudo, e começou a bandalheira.
Um artista saia do bloco? Pois o artista pagava pra tocar na rádio e o dono do bloco pagava o dobro pra que ele não tocasse. Começaram os cartéis, começaram as vendas de lugar na fila, tudo isso sem pensar, em momento algum em qualidade artística, na população que curtia aquilo tudo, e poucos artistas conseguiram sobreviver nesse modelo com certo sucesso. Não houve preocupação com a infraestrutura da cidade, com um carnaval mais democrático e atento à população como um todo. O modelo predatório, vampiresco de certos empresários do carnaval não teve estratégia, visão, planejamento, apenas pensava-se no dinheiro – quanto mais fácil, melhor – e no sucesso individual onde o foco era a conta bancária, e não a arte e a folia.
A “crise do Axé”, como chamam, abriu espaço, por exemplo, para que o sertanejo – mais organizado, unido, com modelo de gestão mais avançado e profissional – voltasse à cidade, em novos moldes, e, agora, através das classes dominantes (o empobrecimento cultural da classe média, média alta e alta demonstra, também, nossa desgraça). Possibilitou a ascensão do pagode que, vindo das classes baixas – com força, convenções rítmicas interessantíssimas –, foi rapidamente cooptado pelo poder. E assim vieram o arrocha e o breganejo, e esse eufemismo inventado de adjetivar o ritmo de universitário, para as classes de maior poder aquisitivo não se sentirem misturadas à ralé; quando, no fundo, a autenticidade da “ralé” é muito mais interessante que essa comprovação, através do sufixo “universitário”, de que as classes mais abastadas estão cada vez mais estúpidas e idiotizadas.
Agora, alguns empresários tentam se safar mancomunados com o poder público, ou abandonam o barco e vão cuidar de seus investimentos noutras áreas com a fortuna que fizeram com o Axé, ou vão atrás dos sertanejos, arrochas, o que tiver dando dinheiro, enquanto der dinheiro. Sugou-se tudo e vão deixar o cadáver lá pro serviço público cuidar. Basta ressucistar, e todos os vampiros estarão a postos para entupir o rabo de dinheiro, novamente, às custas de ações públicas para salvar o carnaval…
A indústria faliu e Ildázio Jr., filho de Ildásio Tavares, vem sistematicamente, em seus artigos, abrindo essa caixa preta de um modelo de gestão predador, autoritário, excludente, ainda nos moldes do século XVI.
Outros exemplos poderiam existir, mas fiquemos num último: o futebol. O Esporte Clube Bahia sempre manteve a hegemonia dos campos baianos. Chegando a conquistar um tento, o time mantinha seu trono com pequenos deslizes que permitiam ao Vitória, ao Fluminense de Feira, e mais um ou dois, serem campeões esporádicos.
O Bahia chegou a ser campeão brasileiro em cima do time de Pelé, 1959, e depois em cima do Internacional, em 1988. Sempre com patrocínio de grupos econômicos ligados a um modelo ainda diretamente relacionado aos donos do poder, depois à ditadura militar, com hegemonias, políticas excludentes por um lado e generosas, por outro, tudo isso fortalecia a Salvador província dos governos biônicos, dos grupos políticos que, desde o descobrimento, mantiveram-se no poder administrando seu feudo, sua roça, a primeira e degradada capital do país.
Fala-se muito nos desmandos, desonestidades, más-gestões e administrações do Bahia há tempos. James Martins, inclusive, publicou um artigo aqui no site do Teatro NU pedindo uma greve da torcida. Tudo ficou mais evidente, o Brasil modernizou-se, os clubes do país começaram a se encaixar em novos modelos econômicos – sem muito sucesso, é verdade – e novos modelos de futebol. O Bahia, como a Bahia e Salvador, foram ficando pra trás.
Ver um time como o Bahia residir por anos na segunda divisão seria inimaginável, na minha adolescência. Assim como foi inimaginável ver o Bahia perder de 5×1 na reinauguração da Fonte Nova e agora perder de 7×3! Esse é o time que irá disputar o campeonato brasileiro? E seus dirigentes? O que fazem? Estão endividados, passando necessidades, morando de favor, pedindo empréstimos para sobreviver? Estão à míngua, pobres coitados, como os empresários do Axé e os políticos que sempre mandaram na Bahia?
O Vitória modernizou-se, investiu na sua base, acabou de ser campeão brasileiro sub-20, e só não cresce mais porque abacateiro não dá caju e o modelo de gestão ultrapassado, vampiresco e provinciano, ainda resiste em suas hostes, também.
O que temos em Salvador, atualmente? Na política, sempre faço uma pergunta a pessoas lúcidas, cultas, informadas e interessadas em política. Levanto a hipótese de eu ser um gênio da lâmpada que pudesse colocar no poder qualquer nome que a pessoa escolhesse. Desesperadamente, vejo que ninguém pensa num nome. Chegamos a um ponto, na cidade, que não dizemos mais “ah, se fosse fulano”, “deveria ser beltrano”, “cicrano faria bem melhor”. Estamos num fundo de poço onde não conseguimos dizer sequer um nome que nos desse esperança.
Ivete Sangalo, Claudia Leitte, Saulo e mais uns poucos souberem criar uma estrutura empresarial que deu suporte a suas carreiras, e por conta disso não entraram no buraco negro da crise carnavalesca que vivemos. Mas esses não salvarão nossa indústria que, a despeito de toda escrotidão, trouxe benesses inegáveis pra cidade, desde um mercado de trabalho, de uma possibilidade de músicos sobreviverem sem precisar sair daqui, até uma visibilidade, um novo gás à música do Brasil – que continua dando, com suas invenções e musicalidade genuína, boa contribuição mais que qualquer outro lugar –, enfim, já ficou claro que há que se pensar num novo modelo de gestão para nosso carnaval que, em seu viés industrial, empresarial e turístico, está em crise (digo isso porque continuo curtindo um maravilhoso carnaval de rua atrás de trio sem cordas, em belos xous pela cidade…).
No futebol, talvez o Vitória consiga fazer um razoável campeonato, mas o Bahia de agora só tem um destino: a segunda divisão. O que é triste, decepcionante, notadamente para essa torcida maluca que vem sofrendo imerecidamente essa humilhação seguida. Contudo, mantém aquela atitude típica do pensamento subdesenvolvido de continuar crendo, crendo, não à toa o que mais cresce nesse país são os crentes…
Costumo dizer que Salvador decretou sua desgraça, sua ruína e sua sina de ser uma cidade fracassada quando derrubaram a Igreja da Sé pra passar uma linha de bonde. Com apoio de jornal. Nem um abaixo-assinado e os protestos dos principais intelectuais e instituições da cidade conseguiram que a igreja deixasse de ser demolida. Os interesses econômicos, políticos e financeiros falaram mais alto e passaram por cima de tudo e todos.
Assim foi com vários outros monumentos históricos, assim foi com a memória de notáveis dessa terra, assim continua sendo com a bela Salvador que ainda resiste. Ressurgiremos dessa cinza? Mudaremos um modelo que tem quase quinhentos anos e nos levou ao precipício? Que Salvador podemos pensar em ter diante de tanta estupidez, brutalidade e ganância?
De capitania hereditária, passamos a uma capital sem capitão e com uma herança maldita. Penso que já fracassamos o suficiente. É hora de mudar, antes que o pouco que resta de interessante nessa cidade suma ou se mude.
*Gil Vicente Tavares é Doutor em Artes Cênicas