Paulo Fábio*
Se for mantida na rotina do banho-maria, essa eleição de outubro não vai produzir nada de qualitativamente diferente do que aí está. E digo isso não porque abomine eleições, ou partidos, mas exatamente pelo contrário: continuo valorizando partidos e gostando muito de eleições, mas creio que precisamos dar a essa próxima um sentido que no momento lhe falta.
Se mantido o banho-maria, o que podemos esperar? 1. Uma provável vitória do PT, que consolide a sua hegemonia, isto é, nos oferte um aparelho três em um (Brasil, Bahia e Salvador) para tocar, com som abafado, uma partitura monocórdia capaz de gerenciar com verniz politicamente correto a entrega da cidade a corporações econômicas, que hoje é feita pelo nosso alcaide e seus empresários políticos terceirizados de modo tosco e em volume estridente; ou 2. O incerto sucesso eleitoral de uma aposta aventureira numa personalidade midiática politicamente outsider e requentada para ser apresentada, como foi no passado, como uma solução oposicionista.
Diante dessas duas sombras no horizonte, o que fazer? Em outubro, num segundo turno, apenas escolher o que nos parecer “menos pior” ou, no máximo, anular o voto, no que certamente teríamos a companhia de uma ínfima minoria. Mas agora, nove meses antes, talvez haja modo de tentar fazer com que uma mobilização de cidadãos, tal qual um espermatozóide bêbado (bêbado no bom sentido, no sentido dos amantes do bem viver, portanto, não se assustem os amantes da lei seca), drible o Dispositivo de Interdição Urbana (a sigla DIU será coincidência?) e termine fecundando o ambiente politicamente esterilizado da nossa cidade.
Os que me conhecem mais de perto sabem das cautelas que guardo em relação a movimentos aparentemente horizontais que podem servir, no fim da linha, a pescadores pragmáticos de águas tornadas turvas e revoltas por uma indignação advinda de uma suposta espontaneidade. Não sejamos ingênuos e saibamos que a partir de um movimento desses pode acontecer tudo, inclusive nada (esta última, aliás, pode ser vista como a hipótese mais provável). E que, para além do nada, há outras hipóteses nada preferíveis, como a “movimentação cidadã” ser instrumentalizada pelo PT e sua rede governante para pavimentar mais facilmente a vitória do seu candidato nas eleições de outubro, após o que um “voto de confiança” dos “setores organizados” ao novo governo faria voltar a vigorar a paz do silêncio cúmplice, em troca de um punhado de mesuras e benesses.
Perigos? Sim, a vida é perigosa. Mas preferível a qualquer morte, ainda mais à morte inglória, lenta e resignada. Trocando em miúdos: se for realista a profecia do candidato Nelson Pellegrino de que chegou a vez de Salvador ser governada pelo PT, não creio que qualquer primavera seja capaz de evitar que chegue esse verão cheio de estrelas. Mas pode fazer muita diferença (para o PT ou qualquer outro partido) governar com ou sem a fecundação do ambiente político pela movimentação social.
Um pouco da história política mais ou menos recente de Salvador pode ilustrar o que tento dizer: falo do tempo do prefeito carlista nomeado Manoel Castro, que administrou por três anos (1983, 1984 e 1985) uma cidade em crise, com apoio (discutível) de apenas 7 dos então 33 vereadores e a oposição nítida de quase todos os demais 26. Naquele contexto, nem o famoso chicote nem a bolsa do chefe político do grupo carlista foram acionadas para tornar a vida do prefeito mais fácil na Câmara. E não foram acionados não só porque o estilo do prefeito era avesso a esses métodos, mas principalmente porque não teriam serventia. Embora os 26 vereadores de oposição não fossem fortalezas morais inexpugnáveis (havia de tudo, como em todas as Câmaras), naquele ambiente político, nos estertores da ditadura, os espermatozóides sociais estavam livres e a presumida repercussão eleitoral da pressão que exerciam não deixava margem aos efeitos esterilizantes do adesismo e da cooptação. E com isso a cidade ganhou (3 anos antes da Constituição Federal de 1988, com prefeito carlista nomeado e tudo) uma legislação estruturante (Lei do Processo de Planejamento e Participação Comunitária; Lei do Ordenamento, Uso e Ocupação do Solo; Lei do Plano Diretor), além de lograr conter em marcos institucionais uma crise gravíssima nos transportes públicos, que se tornara dramática no quebra-quebra dos ônibus de 1981. Esses marcos institucionais foram: um Conselho Municipal de Transportes, uma legislação reguladora da política tarifária e o início, nos anos subseqüentes, da concepção, pela Prefeitura, de uma estrutura técnica de planejamento e controle de informações do sistema de transportes, que foi implantada e aprimorada, durante uma década e meia, pelas gestões municipais subseqüentes (Mário Kertész, Fernando José, Lídice da Mata e a primeira gestão de Imbassahy), enfraquecendo-se a partir do final dos anos 90 (segundo mandato de Imbassahy) e mais acentuadamente na gestão do atual prefeito, até se chegar novamente à lamentável situação de termos um sistema sobre o qual o empresariado (defendendo, como natural e, a princípio, legítimo, o seu interesse) detém maior controle de informações do que o poder público, o qual não faz corretamente a sua parte, que seria renovar constantemente a sua capacidade técnica e abrir-se à participação política, em vez de desestruturar uma e outra, como tem feito.
Um pouco da história política mais ou menos recente de Salvador pode ilustrar o que tento dizer: falo do tempo do prefeito carlista nomeado Manoel Castro, que administrou por três anos (1983, 1984 e 1985) uma cidade em crise, com apoio (discutível) de apenas 7 dos então 33 vereadores e a oposição nítida de quase todos os demais 26. Naquele contexto, nem o famoso chicote nem a bolsa do chefe político do grupo carlista foram acionadas para tornar a vida do prefeito mais fácil na Câmara. E não foram acionados não só porque o estilo do prefeito era avesso a esses métodos, mas principalmente porque não teriam serventia. Embora os 26 vereadores de oposição não fossem fortalezas morais inexpugnáveis (havia de tudo, como em todas as Câmaras), naquele ambiente político, nos estertores da ditadura, os espermatozóides sociais estavam livres e a presumida repercussão eleitoral da pressão que exerciam não deixava margem aos efeitos esterilizantes do adesismo e da cooptação. E com isso a cidade ganhou (3 anos antes da Constituição Federal de 1988, com prefeito carlista nomeado e tudo) uma legislação estruturante (Lei do Processo de Planejamento e Participação Comunitária; Lei do Ordenamento, Uso e Ocupação do Solo; Lei do Plano Diretor), além de lograr conter em marcos institucionais uma crise gravíssima nos transportes públicos, que se tornara dramática no quebra-quebra dos ônibus de 1981. Esses marcos institucionais foram: um Conselho Municipal de Transportes, uma legislação reguladora da política tarifária e o início, nos anos subseqüentes, da concepção, pela Prefeitura, de uma estrutura técnica de planejamento e controle de informações do sistema de transportes, que foi implantada e aprimorada, durante uma década e meia, pelas gestões municipais subseqüentes (Mário Kertész, Fernando José, Lídice da Mata e a primeira gestão de Imbassahy), enfraquecendo-se a partir do final dos anos 90 (segundo mandato de Imbassahy) e mais acentuadamente na gestão do atual prefeito, até se chegar novamente à lamentável situação de termos um sistema sobre o qual o empresariado (defendendo, como natural e, a princípio, legítimo, o seu interesse) detém maior controle de informações do que o poder público, o qual não faz corretamente a sua parte, que seria renovar constantemente a sua capacidade técnica e abrir-se à participação política, em vez de desestruturar uma e outra, como tem feito.
Então, na impossibilidade de se ter, no momento, um partido ou movimento político capaz de unir forças sociais e urbanas para sustentar uma candidatura eleitoralmente viável que expresse uma efetiva mudança de rumo para Salvador, penso que a alternativa disponível ao cinismo ou ao tédio resignado é apostar numa mobilização pré-eleitoral que possa minimamente disputar, com o corporativismo de grupos políticos e econômicos, a influência sobre as condutas dos candidatos e dos futuros eleitos à Prefeitura e Câmara. Mesmo que mais adiante essa pretensão se revele irrealista, ou mesmo presunçosa, talvez se possa, ao menos, inibir, nesse bem vindo ano eleitoral, a consumação mais radical do saque que vem se fazendo contra o patrimônio financeiro, urbano, cultural e moral da nossa cidade.
Por isso penso que podemos ir à passeata na quarta-feira, pensando em Fernando Pessoa:
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
*Paulo Fábio é professor da UFBa e Cientista Político
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