O
que de melhor podemos nos desejar, ao completarmos 463 anos, é que ocorra em
Salvador um encontro feliz entre a cidade e a política que nela se pratica. Sei
que não é pouco o sonho, mas não temos escolha: se o perdermos, estaremos
perdidos.
Soteropolitanos
de boa vontade cultivaram, por bom tempo, a ilusão de que os traços culturais
singulares da antiga “Cidade da Bahia” – inscritos de modo exuberante na face
do seu povo até mais ou menos a passagem dos 70 aos 80 do século passado –
poriam a moderna Cidade do Salvador a salvo do desencanto que acomete cidades
submetidas a uma exploração capitalista sem controle de espaços urbanos e à
degradação ou mercantilização de serviços públicos essenciais. Afinal, por
aqueles traços singulares – que parte de nós ainda tem na memória – terem resistido
ao regime autoritário, não se supôs que o mercado bruto e uma elite política
tosca operariam, justo ao se conquistar a democracia política, a desconstrução
urbana que a ditadura deixara a meio caminho.
Infelizmente
é o que tem acontecido. A consciência de cidade que ainda subsiste em nós
precisa acordar daquele autoengano e superar o desejo nostálgico pelo retorno
da baianidade antiga, que pouco significa para a maioria dos atuais eleitores
de Salvador. Maioria que vota sem ser cidade, multidão de criaturas cujas almas
padecem de solidão opressiva e desejosa de consumo, apesar da beleza física que
remanesce grátis no lugar.
É
esse viver aquém da urbanidade do eleitor comum de Salvador que explica a
atitude predatória da elite política para com o patrimônio humano e ambiental
da cidade. Imediatista em seu pragmatismo ela se acomoda ao senso comum e se
precipita num vale tudo eleitoral. Ciosos de distribuir benesses a granel para
se manterem competitivos, partidos e políticos entregam-se a quem pode
financiá-las. Suicídio a médio prazo, pois assim a elite política esquece o desiderato
que pode justificá-la no tempo é o exercício de um poder estável sobre os
governados. Esse objetivo não se realiza se a monetarização da política destrói
o espaço público em que os governados se constituem em cidadãos reunidos em
corpo eleitoral.
A
qualidade da vida urbana numa cidade define se ali haverá um corpo eleitoral ou
um amontoado de seres capazes apenas de converter seu voto em mercadoria de
varejo. O político eleito hoje não pode contar senão por mínima fração de
tempo, com a lealdade do eleitor de espírito seco, minado de desconfiança. Por
isso busca manter abertas as torneiras de recursos que irrigam esse patrimônio
eleitoral politicamente árido. Essa água benta é posse de governos e
empresários, que a fornecem também sob critérios de mercado, volúveis,
voláteis.
Compreender
essa realidade sem ilusões não significa desdenhar do passado de Salvador, ou
de valores urbanamente saudáveis que ele nos legou. Ao contrário, nos impele a
transmitir – diria até ensinar – com paciência, aos soteropolitanos de hoje,
aos jovens em especial, a cultura urbana que eles não conheceram. Mas pelo que
se conhece da atualidade e da história política recente de Salvador, o caminho
político possível é a busca de uma nova urbanidade. Para isso precisa ter um
fim a atual conversa de surdos entre os mundos da política e da cultura,
reveladora de ignorâncias recíprocas que tornam urgente articularem percepção
estética, conhecimento acumulado e uma estratégia política. Em nome do direito
à cidade, luta contemporânea sempre e hoje ainda mais.
Não
sabemos se alguma liderança será capaz de estimular o conflito político
necessário para trazer à tona essa chance talvez submersa no urbano
soteropolitano. Se a política fracassar nessa missão, conflitos podem emergir
de todo modo, porém cada vez mais como violência estéril, transbordada de
guetos formados pelo vácuo de projetos políticos de cidade. Na política, mais
que em qualquer outra seara, é preciso, em Salvador, ser inédito. Na política
soteropolitana, ao contrário do que se dá noutros domínios da vida da cidade,
há pouco a aprender com a tradição.
*Cientista político,
professor e pesquisador. Foi deputado estadual pelo Partido Comunista do
Brasil - PCB
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