segunda-feira, 2 de abril de 2012

Salvador pede o inédito de presente

 Paulo Fábio Dantas Neto*


O que de melhor podemos nos desejar, ao completarmos 463 anos, é que ocorra em Salvador um encontro feliz entre a cidade e a política que nela se pratica. Sei que não é pouco o sonho, mas não temos escolha: se o perdermos, estaremos perdidos.
Soteropolitanos de boa vontade cultivaram, por bom tempo, a ilusão de que os traços culturais singulares da antiga “Cidade da Bahia” – inscritos de modo exuberante na face do seu povo até mais ou menos a passagem dos 70 aos 80 do século passado – poriam a moderna Cidade do Salvador a salvo do desencanto que acomete cidades submetidas a uma exploração capitalista sem controle de espaços urbanos e à degradação ou mercantilização de serviços públicos essenciais. Afinal, por aqueles traços singulares – que parte de nós ainda tem na memória – terem resistido ao regime autoritário, não se supôs que o mercado bruto e uma elite política tosca operariam, justo ao se conquistar a democracia política, a desconstrução urbana que a ditadura deixara a meio caminho.
Infelizmente é o que tem acontecido. A consciência de cidade que ainda subsiste em nós precisa acordar daquele autoengano e superar o desejo nostálgico pelo retorno da baianidade antiga, que pouco significa para a maioria dos atuais eleitores de Salvador. Maioria que vota sem ser cidade, multidão de criaturas cujas almas padecem de solidão opressiva e desejosa de consumo, apesar da beleza física que remanesce grátis no lugar.
É esse viver aquém da urbanidade do eleitor comum de Salvador que explica a atitude predatória da elite política para com o patrimônio humano e ambiental da cidade. Imediatista em seu pragmatismo ela se acomoda ao senso comum e se precipita num vale tudo eleitoral. Ciosos de distribuir benesses a granel para se manterem competitivos, partidos e políticos entregam-se a quem pode financiá-las. Suicídio a médio prazo, pois assim a elite política esquece o desiderato que pode justificá-la no tempo é o exercício de um poder estável sobre os governados. Esse objetivo não se realiza se a monetarização da política destrói o espaço público em que os governados se constituem em cidadãos reunidos em corpo eleitoral.
A qualidade da vida urbana numa cidade define se ali haverá um corpo eleitoral ou um amontoado de seres capazes apenas de converter seu voto em mercadoria de varejo. O político eleito hoje não pode contar senão por mínima fração de tempo, com a lealdade do eleitor de espírito seco, minado de desconfiança. Por isso busca manter abertas as torneiras de recursos que irrigam esse patrimônio eleitoral politicamente árido. Essa água benta é posse de governos e empresários, que a fornecem também sob critérios de mercado, volúveis, voláteis.
Compreender essa realidade sem ilusões não significa desdenhar do passado de Salvador, ou de valores urbanamente saudáveis que ele nos legou. Ao contrário, nos impele a transmitir – diria até ensinar – com paciência, aos soteropolitanos de hoje, aos jovens em especial, a cultura urbana que eles não conheceram. Mas pelo que se conhece da atualidade e da história política recente de Salvador, o caminho político possível é a busca de uma nova urbanidade. Para isso precisa ter um fim a atual conversa de surdos entre os mundos da política e da cultura, reveladora de ignorâncias recíprocas que tornam urgente articularem percepção estética, conhecimento acumulado e uma estratégia política. Em nome do direito à cidade, luta contemporânea sempre e hoje ainda mais.
Não sabemos se alguma liderança será capaz de estimular o conflito político necessário para trazer à tona essa chance talvez submersa no urbano soteropolitano. Se a política fracassar nessa missão, conflitos podem emergir de todo modo, porém cada vez mais como violência estéril, transbordada de guetos formados pelo vácuo de projetos políticos de cidade. Na política, mais que em qualquer outra seara, é preciso, em Salvador, ser inédito. Na política soteropolitana, ao contrário do que se dá noutros domínios da vida da cidade, há pouco a aprender com a tradição.
*Cientista político, professor e pesquisador. Foi deputado estadual pelo Partido Comunista do Brasil - PCB

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