domingo, 22 de novembro de 2009

BAHIA, O LUGAR IDEAL

ARNALDO JABOR
Não consigo ir embora da Bahia.
Acabaram minhas férias e continuo aqui.
Mesmo que eu viaje, levarei a Bahia comigo.
Não se trata de louvá-la; quero entendê-la, não com a cabeça, mas com o corpo, com as mãos, com o nariz, entender como um cego apalpa um objeto, entender por que este lugar é tão fortemente estruturado em sua aparente dispersão.
Aí, descubro que, ao contrário, a Bahia me ajuda a “me” entender. Não sou eu quem olha; a Bahia que me olha de fora, inteira, sólida, secular, a paisagem me olha e fica patente minha alienação de carioca-paulista, fica evidente meu isolamento diante da vida, eu, essa estranha coisa aflita que está sempre entre um instante e outro, sem nunca ser calmo, inconsciente e feliz como um animal.
Na Bahia, vejo-me neurótico, obsessivo, sempre em dúvida, ansioso.
Gostaria de estar na praia de Buraquinho, quieto, dentro do mar, como um peixe, como parte da geografia e não fora dela.
Ninguém aqui se observa vivendo. Salvador não é uma “cidade partida” como é o Rio, nem a cidade que expele seus escravos, como São Paulo, que um dia será castigada, estrangulada por sua periferia.
Aqui, de alguma forma misteriosa, os pobres e negros, mesmo sem posses, são donos da cidade.
A cultura africana que chegou nos navios negreiros, entre fezes e sangue, parece ter encontrado a região “ideal” neste promontório boiando sobre o mar, batido de um vento geral, para fundar uma cidade erótica e religiosa, plantada nos cinco sentidos, fluindo do corpo e da terra.
Os casarios subiram os montes, desceram em vales por necessidades dos colonos e dos escravos do passado, o espaço urbano foi desenhado pelo desejo dos homens.
A Bahia foi o lugar perfeito para a África chegar.
Tudo se sincretiza, natureza e cultura.
Espírito e matéria se unem como um bloco só, amores e vinganças fluem no sangue dos galos e dos bodes, esperanças queimam nas velas de sete dias, todas as coisas se amontoam num grande procedimento barroco de não deixar vazio algum, nada que sobre, que fique de fora, nada que isole matéria e gente.
Os deuses não estão no Olimpo; são terrenos e florestas, estão na rua, no dendê, dentro da planta.
Consciência e realidade não se dividem, o povo e o mundo são a mesma coisa, e isso aplaca as neuroses, as alienações das megacidades onde o homem é um pobre diabo perdido no meio dos viadutos.
Como nas fotos do Mário Cravo Neto, tudo se une em um só bloco: o alvo pato e a mão negra, a mulher nua e a pedra, o nadador, o sol e a água, as frutas, os cestos e as bocas, as plantas e os pés, os búzios e os segredos, os santos e os orixás, as mãos e o tambor, a fome e a carne, o sexo e a comida.
Tenho uma espécie de inveja e saudade desta cultura integrada, dessa sociedade secreta que vejo nos olhares das pessoas falando entre si, uma língua muda que não entendo, tenho inveja da palpabilidade de suas vidas materiais, tenho inveja da grande tribo popular que adivinho nos becos e ladeiras , das pessoas que riem e dançam nas beiras de calçada, que se amam na beira do mar. Tenho inveja desta cultura calma que vive no “presente”, coisa que não temos mais nas “cidades partidas”, sem passado e com um futuro que não cessa de não chegar.
Nesta época maníaca e americana, que se esvai sem repouso, aqui há o ritmo do prazer, a “sábia preguiça solar” de que falou Oswald e que Caymmi professa.
A civilização que os escravos trouxeram criou esta “grande suavidade”, este mistério sem transcendência, este cotidiano sem ansiedade, esta alegria sem meta, esta felicidade sem pressa. Aqui a cultura vem antes da lei.
Aqui o soldado na guarita é um negro com passado e orixás, dentro da roupa de soldado.
O bombeiro, o vendedor, o pescador, o vagabundo se comunicam e existem antes das roupagens da sociedade.
Até se travestem, se fantasiam deles mesmos nos horrendo resorts caretas da burguesia, mas não perdem a alma para o diabo, defendidos pela vigilância de seus Exus.
A sinistra modernidade tenta adquirir a Bahia, possuí-la, apropriar-se das praias, das ilhas, dos panoramas.
Mas mesmo o progresso urbano e tecnológico aqui fica domado de certo modo pela cultura, que resiste a esses embates.
Os balneários turísticos aqui me parecem meio patéticos, meio Miami na vivência luxuosa dos acarajés, camarões e
uísques trazidos por serviçais iaôs e mordomos de cabeça feita.
Aqui não se veem os rostos torturados dos miseráveis do Rio e São Paulo: a pobreza tem uma religião terrena costurando tudo.
As festas do ano inteiro não são diversionistas, orgiásticas, para “divertir” – são para integrar. As festas têm uma
religiosidade pagã, sem sacrifícios, sem asceses torturadas de olhos virados para o céu.
Nada sobrou do barroco europeu sofrido; prosperou o barroco gordo, pansexual, com as frutas, os anjinhos nus, os refolhos e os européis invadindo o convulsivo barroco da contra-reforma, com as curvas carnavalescas nas igrejas cheias de cariátides peitudas, sexies, gostosas, como as mulatas do Pelourinho.
Não é uma sociedade, mas um grande ritual em funcionamento.
O Brasil aflito, injusto, imundo, inóspito devia aspirar a ser Bahia. Aqui dá para esquecer o jogo sujo do Congresso em
Brasília, revelando a face oculta dos bandidos com imunidade, emporcalhando a democracia, aqui você não morre afogado na enchente da marginal do Tietê, nem o Ronaldinho é assaltado com revólver na cabeça.
Não conheço lugar mais naturalmente democrático.
E, por isso, não consigo ir embora.
Vou comprar uma camiseta “NO STRESS” e ficar
bebendo um frappé de coco para sempre.
Arnaldo Jabor – Porto da Barra – Salvador / BAHIA
*Artigo originalmente publicado no Jornal O Globo

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