Márcio Correa Campos*
Em janeiro de 1977 era inaugurado em Paris o Centro Georges Pompidou, o edifício que, visto a partir da perspectiva histórica de hoje, é provavelmente o mais importante no mundo dentre os construídos na segunda metade do século XX. Selecionado a partir de um dos concursos internacionais mais debatidos à sua época, o Projeto de Renzo Piano e Richard Rogers articulou, exatamente na década que iria experimentar o auge das tendências pós-modernas historicizantes em ambos lados do Atlântico, os mais importantes impulsos de improvável renovação da arquitetura moderna, com os elementos do debate espacial e tecnológico levantados nos anos 60 (palavra-chave: Archigram) e a discussão da manutenção da vitalidade dos centros históricos europeus, à beira de um processo de expansão geográfica através de subúrbios e de uma progressiva destinação de uso ao turismo de massas, em uma arquitetura unicamente otimista, radical e renovadora, algo reservado a obras excepcionais. Um professor que tive na Universidade Técnica de Viena afirmava, em uma frase de efeito e em uma comparação destemida, que o Centro Georges Pompidou deveria ser estudado por arquitetos como uma sinfonia de Beethoven é estudada por músicos.
Maior exemplo da arquitetura que é reconhecida como high-tech, com a sua rigorosa separação entre os espaços de exposição no centro do volume arquitetônico e os espaços de apoio (equipamentos de circulação como elevadores e escadas rolantes, instalações, etc) situados dos dois lados maiores, na periferia do edifício, por assim dizer expostos nas fachada, o edifício com sua clara e simples definição volumétrica e sua estrutura com forte impacto de imagem recebeu críticas que o descreviam como “uma refinaria de petróleo” no centro da capital francesa. Ainda que a esta radicalidade estética, correspondente inclusive ao fato de o edifício não possuir uma fachada no sentido tradicional do termo, pois hipoteticamente módulos poderiam ser adicionados ao seu lado menor em uma extensão sem limites nas duas direções, é parte de uma resposta aos desafios de um programa que exige espaços amplos e flexíveis em vários andares, graças à compacidade de seu volume foi possível criar a grande praça que lhe serve de esplanada de acesso e organiza em harmonia tanto o espaço público como a inserção do edifício no seu entorno, atingindo um equilíbrio que é fruto de uma decisão de projeto extremamente refinada.
Em 1979, dois anos após a inauguração do Centro Georges Pompidou, foi entregue à população da Bahia o Centro de Convenções do Estado, construído a partir de concurso de projeto de arquitetura realizado em 1976 e vencido pelo importante escritório carioca MMM Roberto, responsáveis por alguns dos edifícios mais importantes do movimento moderno no Brasil. Neste momento, caracterizado pela bibliografia especializada como o quarto período do escritório, a administração do escritório estava a cargo de Maurício Roberto, o mais jovem dos irmãos que compuseram originalmente o escritório, e contava com a participação de Márcio, seu filho.
Dentro de todas as evidentes diferenças e distâncias que há entre duas cidades como Paris e Salvador, é impressionante como o escritório carioca elaborou uma proposta que deu origem a um edifício para o Centro de Convenções capaz de estabelecer uma série de elementos radicalmente novos para a cidade e extremamente atualizados em relação à discussão internacional de arquitetura. Em destaque evidente está a articulação das partes, claramente vinculada à arquitetura high tech, entre as torres de concreto armado que abrigam na periferia do volume escadas de emergência, elevadores e sanitários e a grande treliça metálica que compõe o “edifício-ponte” com o espaço livre e flexível destinado ao uso de feiras e convenções, com seus auditórios nas extremidades.
O edifício, além disso, explora sua dimensão para determinar urbanisticamente um marco espacial de caráter direcional para a ocupação da orla atlântica da cidade: situado na cumeada da linha de elevações mais ou menos paralelas à orla – que segue com alguma regularidade até Itapoã – ele estabelecia claramente um limite para a faixa que não deveria ser verticalizada – entre a praia e o Centro de Convenções – uma função que é claramente reconhecida se somos capazes de imaginar uma expansão da linha imaginária determinada pelo eixo longitudinal do edifício em direção ao norte, através da inserção de uma série de edifícios com semelhante relação paisagística, uma continuidade que pode ser vislumbrada até mesmo com uma própria expansão do edifício-ponte (que, no limite de tal expansão fictícia, poderia se transformar em uma megaestrutura e chegar até o litoral do Rio Grande do Norte). Desta maneira, a linearidade da orla, reforçada no traçado da Avenida Paralela, era reafirmada como arquitetura e, assim, poderia finalmente ter conferido consistência de desenho urbano à paisagem da cidade.
Apesar de escalas bem distintas de articulação com o espaço da cidade (decorrente da extrema diferença de urbanização e densidade entre as duas situações dos dois edifícios), é impressionante como a articulação entre a escala do acesso do usuário e a do edifício-monumento apresentam soluções que, ainda que não semelhantes, correspondentes em seu acerto: no Centro de Convenções, o uso da via de acesso no centro do vale entre as extremidades do edifício, ao passo que estabelece uma orientação inequívoca, oferece uma escala francamente convidativa assim que o usuário encontra-se sob o edifício (algo que depois foi perdido com a ampliação realizada anos mais tarde, estabelecendo outras possibilidades de entrada).
Uma vez alcançado o interior do edifício, o usuário está diante da grande diferença entre o Centro de Convenções e o Centro Georges Pompidou: se a sequência de escadas rolantes no edifício em Paris constitue uma experiência de desfrute da vista para o exterior, no Centro de Convenções, por estarem situadas no interior do edifício, a sequência de escadas oferece uma contemplação do espaço interior do monumental hall verticalizado de acesso aos pisos superiores, de onde então, através da fachada envidraçada, o usuário pode apreciar a vista para a paisagem, do alto, posição adequada para a vista para o mar.
Ainda que construído à época de outros importantes edifícios para a cidade que também introduziam a industrialização no processo construtivo – a exemplo das secretarias do CAB, projetadas por Lelé, em concreto armado – e que não se possa pensar outro edifício icônico da cidade como o é a Casa do Comércio sem a sua existência prévia (embora no edifício à Avenida Tancredo Neves note-se um certo formalismo tanto na simetria como nos balanços), é no fato de que provavelmente nenhum outro edifício em Salvador, nem antes e muito menos depois, ter sido capaz de materializar importantes questões do contemporâneo debate arquitetônico internacional que reside a singularidade do edifício entre o STIEP e a Boca do Rio.
Sua importância para a cultura arquitetônica da cidade, mesmo tendo sofrido incialmente o mesmo tipo de estranhamento de “parecer uma refinaria”, é inconteste. O desenvolvimento da ocupação do solo urbano nestes últimos 40 anos, tanto no seu entorno imediato como na cidade como um todo, efetivamente aconteceu de maneira radicalmente distante de diretrizes ali apontadas (ah, o debate sobre a verticalização da orla…) e se ele hoje pode parecer um tanto “fora do lugar”, este não é um problema do edifício, e sim da cidade. Afinal, Salvador não é mesmo Paris.
*Márcio Correia Campos é Professor de Projeto, Teoria e Crítica de Arquitetura na UFBA, formado por esta universidade e Mestre em Arquitetura pela TU-Vienna.
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