terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Trinta anos de Faraó

Marco Aurélio Luz *
Em 1974 o Ilê Aiyê trouxe o "mundo negro" para o carnaval transformando-o num turbilhão dos blocos afro. Com ele vieram posteriormente outros tantos: Olodum, Muzenza, Malê de Balê, Araketu, Badauê, Oba Dudu, Oba L'aiyê, Oju Oba, Bankoma etc. Com eles, a expressão da afirmação existencial da comunidade negra apoiada pelos valores do riquíssimo legado da civilização negro africana.
O Ilê Aiyê manteve-se como "o mais belo dos belos", pelo conjunto de beleza desfilando com impávido orgulho de sabedoria negro africana encantando a todos.
A presença da Iyalorixá Gitolú D. Hilda, mãe do líder fundador Antônio Carlos Vovô, gerou um calendário de atividades culturais destacando-se "A Noite da Beleza Negra". Nessa atmosfera, foi constituída toda uma original e criativa linguagem própria, na música, na bateria, nas danças, nas roupas e suas estampas, nos penteados, turbantes etc.
Em 1979 foi fundado o Olodum. Depois de Petu e Jair chegou João Jorge vindo do Ilê Aiyê e juntamente com Neguinho do Samba e Lazinho, proporcionaram um calendário de atividades, como o Festival Femadun, e um mar de criatividade musical.
A genialidade de Neguinho do Samba proporcionou a criação do gênero samba reggae e implantou a forma orquestral do Olodum, constituindo sua principal identidade.
As interpretações intensas e originais do canto de Lazinho combinaram com a excelência das músicas e das letras dos compositores do Olodum, de temáticas variadas.
A letra do clássico "Revolta Olodum", de autoria de José Olissam e Domingos Sérgio, revela de forma magnífica uma condensação das revoltas contra as injustiças perpetradas contra o povo do Nordeste. O panorama histórico abrange o Palmares de Zumbi que comandou "exército de ideais, libertador", passando pela Balaiada, Revolta Malê, Canudos de Antônio Conselheiro, o sertão de Lampião, Maria Bonita e Corisco... com música pertinente encerrando com a onomatopeia do som das metralhadoras.
A obra de Cheikh Anta Diop revelando o Egito Negro Faraônico repercutiu em toda comunidade afro descendente. O Egito, antigo berço da civilização, é negro africano.
O Olodum celebrou e divulgou na Bahia e no Brasil a temática que envolveu o desfile "Faraó". A excelente composição de Luciano Gomes fez de "Faraó" um clássico que atravessou fronteiras. Na letra, dimensões civilizatórias se apresentam: religião, mitologia, arquitetura das poderosas pirâmides, a esfinge de Gizé... Tornou-se a principal música e a essência original do Olodum.
"E a terra tremeu e o céu mudou de cor" anunciou o bloco afro Muzenza, investindo num sonho de liberdade, vulcão de criatividade, beleza, alegria e sabedoria que abalou as ruas de Salvador carnavais afora.
Doutor em Comunicação, licenciado em Filosofia, professor, escritor, escultor | maolluz@terra.com.br

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Carnaval na Barra não mais

As chaves da cidade ainda não foram entregues ao Rei Momo. Mas a capital baiana já se encontra em processo acelerado de embriagues. Com um final de semana de antecedência ao calendário, milhares de baianos e turistas estão nas ruas celebrando a vida e a alegria como se não houvesse amanhã. De uma forma tão intensa e inconsequente que alguns já disseram que Salvador é uma cidade devastada pela alegria.
Bom, quem acompanhou de perto as passagens de Leo Santana e Baiana System pela Avenida Oceânica no último domingo pode afirmar que o Carnaval já acabou. Dificilmente haverá uma concentração tão grande até quarta-feira de Cinzas. E claro, com tanta gente na rua, empurrões, brigas e incidentes eram inevitáveis. Moradores da Barra postaram vídeos na internet mostrando a queda de uma muro por causa do tumulto e denunciaram que vândalos estão causando distúrbios nos arredores – que entre outros problemas causou a saída do ar dos sinais de telefone e internet da CVT/Vivo em algumas ruas do bairro.
O próprio secretário de Turismo da capital, Cláudio Tinoco, admitiu que a organização deve ser aprimorada para o próximo ano e deve ser considerado o chamado Furdunço com um dia normal de Carnaval. E de fato, se as ruas principais eram livres para os foliões, as saídas laterais estavam parcialmente impedidas, como não acontece nos dias oficiais da folia. Isso causou muitas dificuldades para quem quis sair de lado quando passavam as principais atrações.
Mas já teve gente reclamando que o Furdunço foi descaracterizado. Atrações demais, trios muito potentes e gente demais nas ruas. Num momento em que muita gente apostava na decadência do Carnaval de rua de Salvador, podemos dizer que esses são problemas até interessantes para quem organiza a festa.
No campo político, a guerra entre apoiadores de Rui Costa e de ACM Neto promete. Primeiro na propaganda. O Governo do Estado colocou nas TVs, rádios e outdoors que o Carnaval pipoca é estadual. A prefeitura respondeu na mesma medida e intensidade – aliás a cada intervalo de programas importantes, vemos muitas propagandas oficiais. No caso é uma briga boa para o folião – já que realmente haverá mais atrações sem cordas nas ruas e nas praças da cidade.
Porém até aí a disputa se mostra. A deputada do PSB, Fabíola Mansur, fez coro às críticas do secretário de Segurança Maurício Barbosa e reclamou do palco montado no gramado do Farol da Barra pela cervejaria oficial do Carnaval deste ano. Lá irão de apresentar Leo Santana, Saulo, Emicida e outros artistas, bem em frente ao Camarote Expresso 2222 de Gilberto Gil, assim que o último trio iniciar sua apresentação em todos os dias de Carnaval, a partir desta terça. Para ela, há uma descaracterização do espaço histórico do Farol com o palco. 

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Medellín vive transformação e humanização

SYLVIA COLOMBO - Folha de São Paulo
Até pouco tempo atrás, Medellín carregava o terrível fardo de ser conhecida apenas como a sede de um dos mais poderosos e brutais cartéis de droga, comandado por um bandido sanguinário chamado Pablo Escobar (1949-1993), hoje infelizmente transformado em ícone pop.
Nos violentos anos 1980, a cidade tinha uma das taxas de homicídio mais altas do planeta —praticamente não há um habitante de "Medallo" (como os locais chamam a cidade) com mais de 30 anos que não tenha um conhecido que morreu de forma violenta naqueles tempos.
Porém essa triste situação começou a mudar para o bem pouco depois da morte de Pablo Escobar.
A razão disso foi uma combinação de boas políticas públicas de reurbanização do espaço com uma sociedade ávida pela paz e animada pela sua personalidade, que mescla "reza e parranda" (parranda é festa, em tradução livre), como o Nobel de Literatura Gabriel García Márquez (1924-2014) definiu os "paisas" (habitantes da região de Antioquia, cuja capital é Medellín).
Gabo achava que apenas por combinar tão bem a fé com a alegria e a vontade de estar em comunidade é que os "paisas" eram capazes de atravessar coletivamente por momentos tão difíceis como aquele período.
PAZ E TURISMO
A Medellín que o turista encontra hoje é o resultado desse movimento de transformação coletiva. A natureza ajuda, dando ao local um agradável clima de montanha, porém não tão frio como o da capital, Bogotá. O ar é agradável e fresco, como numa contínua primavera.
Outro lugar onde literalmente se respiram os novos ares é o Jardim Botânico, com uma linda arquitetura e espaço para shows e conferências, além de um bonito parque arborizado e com trilhas.
Já um passeio obrigatório para quem quer conhecer o passado conflituoso da cidade é o Museo Casa de la Memória, um espaço dedicado a contar, por meio de mostras temporárias e um acervo permanente e multimídia, a história da região. Os monitores, em geral, são gente das próprias comunidades afetadas pela violência.
Quem estiver decidido a ir sempre pode ter uma boa ideia do lugar conhecendo um pouco de seus escritores. Alguns dos melhores da Colômbia nasceram por ali, como Fernando Vallejo, autor de "A Virgem dos Sicários", Jorge Franco, de "Rosario Tijeras", e Hector Abad Faciolince, de "A Ausência que Seremos".

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Os sete pilares claudicantes da ponte

Paulo Ormindo de Azevedo*
Com duas matérias de página inteira do jornal A Tarde dos dias 10 /01 e 7/02, o governo do estado anunciou a licitação da ponte de Itaparica, que não foi prevista no PDDU de Salvador, nem no termo de referência do plano metropolitano. Os sete pilares da ponte seriam:
1º - O Sistema Viário do Oeste vai trazer a produção de grãos e minérios do Oeste para o porto de Salvador. Acontece que o porto de Salvador não opera com  granéis  e o frete rodoviário é muito mais caro que o ferroviário da Fiol. O porto de Aratu, por outro lado, está saturado. 
2º - A ponte vai levar o desenvolvimento para o Oeste da BTS e Baixo Sul. Ou será o contrário? A atratividade de Salvador e do Litoral Norte para o sertanejo é bem maior que a de S. Antônio de Jesus para os soteropolitanos. Essa cidade e Feira de Santana vão ceder para Salvador grande parte de seu comercio. Para ir a Itacaré ou Barra Grande não é mais fácil o turista usar o novo aeroporto de Ilhéus e o Porto Sul?
3º - A ponte vai desenvolver a região metropolitana de Salvador. Como, se ela dá um salto sobre a baia? Um cinturão rodo-ferroviário em volta à baia, poderia integrar quatro portos: Salvador, Aratu e Temadre e São Roque, e quatro centros industriais - CIA, RLAM, estação de regazeificação e estaleiros, além de 20 poços reativados de petróleo. Com essa via se ganharia um polo turístico, histórico e náutico, no Recôncavo. Com a ponte, nada.
4º - Itaparica irá expandir Salvador. Sim, a ilha será um dormitório da Capital, como São Gonçalo no Rio e deposito de contêineres de seu porto. Salvador terá sua área metropolitana duplicada e o ônus de reproduzir mão de obra para gerar riqueza em outros munícipios 
5º - O centro histórico de Salvador vai ser revitalizado com a ponte. Sem um rodoanel, Salvador e seu C,H. vão ser cruzados por 140 mil veículos/dia, que se destinam ao Litoral Norte, aeroporto, COPEC, Ford e cidades do Nordeste. Haja engarrafamentos!
6º - Não haverá mais fila para ir a Itaparica. Não foi o que aconteceu no Rio. As filas para as barcas de Niterói continuam enormes. Não faz sentido pagar pedágio, enfrentar congestionamento e não ter onde estacionar no destino final.
7º - A ponte vai criar empregos e injetar sete bilhões de reais em Salvador. Ledo engano. Os chineses trazem tudo, mão de obra e equipamentos. Neste momento de crise, subscrever 25% deste empreendimento e pagar 480 milhões anuais pelo seu uso é um risco muito alto. O estado já tomou um calote da Asia/Kia e, há três anos, enterrou um carro Jac, chinês, em Camaçari. 

Qual o custo-beneficio, prioridade e riscos deste projeto, num estado que tem 25% de analfabetos, a maior taxa de desemprego do país e é o mais rural, além de concentrar 50% da renda na RMS.
*Arquiteto. Professor Titular da Ufba

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Canto do Povo de Um Lugar

Leonardo Campos*
Aos que não conhecem devidamente o gênero axé music e pensam nesta manifestação cultural apenas com ojeriza, o documentário Axé – Canto do Povo de Um Lugar é um didático e bem fundamentado material para promover a reflexão e fazer estes olhares míopes enxergarem as coisas de um modo bastante diferente. O gênero que havia completa 30 anos em 2015 (se considerarmos Luiz Caldas como o marco zero) não havia ganhado uma comemoração na seara audiovisual. Foi pensando nisto que Chico Kertész realizou a produção.
O começo já emociona: a voz over de Ivete Sangalo cantando Baianidade Nagô, canção lançada no álbum Negra, da Banda Mel, em 1991, dá o tom saudosista do filme. “Já pintou verão, calor no coração, a festa vai começar…”. Um misto de riso e emoção se revela nesta abertura, principalmente para quem viveu bem de perto esta história que parece ter entrado em decadência nos últimos anos.
É preciso convicção e entrar num consenso: o carnaval de Salvador não é mais o mesmo, concorda? Cláudia Leitte não exala uma gota de criatividade e parece um mix de Britney Spears com qualquer coisa ruim que Daniela Mercury já tenha feito. Ivete Sangalo é uma cantora competente, carismática aos extremos, mas não entregou nenhuma canção digna de orgulho para os baianos nos últimos anos. A topografia do carnaval não permite muitas modificações de estilo e a festa parece sufocante para os que curtem a folia longe de um dos maiores ícones da segregação carnavalesca: os camarotes. Para quem conhece o carnaval baiano por essas vias, torna-se compreensível uma reflexão de caráter negativo.
Há, entretanto, uma história rica e audaciosa por detrás dessa realidade mais atual e destas questões mais gerais, algo que precisa ser descoberto e entendido por todos aqueles que se interessam pela produção cultural realizada no Brasil. O carnaval, citado anteriormente, é uma base para qualquer reflexão ligada aos envolvidos com o gênero axé music, manifestação que mescla elementos da música afro, do pop, do samba e até mesmo de ritmos caribenhos. Diferente, por exemplo, da música pop estadunidense, que geralmente envolve um álbum, videoclipes, apresentações televisivas e turnês, a produção de música do gênero axé music têm a liberdade de circular por tais suportes, mas desaguam na movimentação cultural anual que ocorre geralmente no mês de fevereiro.
Considerado como um dos movimentos musicais mais globalizados do mundo, o gênero carrega muito do sincretismo e da história cultural da Bahia. Sendo assim, o documentário reúne entrevistas e imagens de arquivo, tendo em mira contar o passado, delimitar o marco zero (Luiz Caldas), propostas para o futuro e manutenção do movimento (Saulo Fernandes), sempre reforçando as participações mais importantes dentro deste panorama histórico, tudo do ponto de vista, claro, dos envolvidos na produção.
A tarefa hercúlea do esquemático roteiro, assinado pelo diretor Chico Kertész, em parceria com Jaime Martins, era contar uma história rizomática, que se espalha em nosso mapa cultural histórico repleto de acontecimentos de importante semelhança que atravessaram décadas e contagiaram gerações. Através de uma média de 90 entrevistas, o filme retrata a evolução técnica e artística do gênero axé music, bem como o preconceito de muitos desinformados no que diz respeito a tal estilo. A produção também radiografa com eficiência a relação do gênero com a economia que gravita em torno da indústria do carnaval e do show business baiano, além de traçar um bem fundamentado estudo das “origens” do gênero.
A produção, que levou dois anos para ficar pronta, graças ao nosso sistema burocrático de direitos autorais, traz depoimentos de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Ivete Sangalo, Daniela Mercury, Saulo Fernandes, Vovô do Ilê Ayê, Netinho, Beto Jamaica, Claudia Leitte, Luís Caldas, Bell Marques, Ricardo Chaves, Sarajane, Márcia Short, Tonho Matéria, dentre outros artistas locais, bem como empresários, produtores, executivos, radialistas e alguns compositores.
Neste processo, os artistas mais importantes recebem os seus devidos reconhecimentos: Luiz Caldas apontado como o responsável por sedimentar os teclados e as guitarras elétricas; Gerônimo por mesclar salsa, merengue e ritmos latinos ao candomblé; as bandas Asa de Águia e Chiclete com Banana por arrastarem multidões; o Araketu por enfatizar o poder do tamborim no bojo do baticum; o grupo Olodum e a sua mundialização ao dar o devido tratamento ao samba-reggae, algo que causou interesse em artistas como Michael Jackson e Paul Simon; as bandas Mel e Reflexu’s por embalarem os blocos afros com o ritmo pop; Carlinhos Brown e a sua competência como artista; as coreografias com pitadas de axé e sensualidade do É o Tchan, espécie de precursor de grupos como Terra Samba, Harmonia do Samba e Psirico; Ivete Sangalo, apontada como o fenômeno mais importante pós-apogeu; e Daniela Mercury, a rainha do Axé, a “branca mais pretinha da Bahia”, responsável por internacionalizar o gênero e fundir elementos do pop e da MPB.
Nesta radiografia somos relembrados do emocionante show de Daniela Mercury no MASP, um evento que sacudiu, literalmente, as estruturas do museu. 

Há também os relatos da primeira apresentação de Ivete Sangalo na Banda Eva, bem como a sua saída, retratada com bastante emoção pelas imagens de arquivo; o sucesso do Gera Samba, logo depois transformado em É o Tchan, grupo musical que apesar de aparentemente fugaz, durou bastante e mesclou com eficiência elementos do samba, do pagode e de alguns outros ritmos de matriz africana.
Os importantes depoimentos de Caetano Veloso e Gilberto Gil, artistas que simpatizam com as manifestações culturais oriundas do gênero axé music, surgem como responsáveis por referenciar os artistas de maior destaque. A dupla reconhecida mundialmente por seus trabalhos há décadas, verdadeiros guardiões da cultura, apontam e analisam alguns destaques do cânone musical do gênero, alocados com eficiência na montagem do documentário.
Será que por conta da burocracia que transformou o processo de produção de seis meses para dois anos, Margareth Meneses tenha ficado sem a sua trajetória apresentada? E Cid Guerreiro, que sequer foi citado? Carla Visi também não dá as caras. A aparição de Armandinho é quase nula. Estas dúvidas ficam no ar, mas o deleite (sem trocadilhos intencionais) ficou por conta da análise de Cláudia Leitte, uma celebridade que apesar de aparecer muito bem em alguns depoimentos, tem o merecido tratamento: é apontada como uma artista com star quality, alguém que possui a capacidade de atrair a audiência, mas que artisticamente representa apenas um mero produto desta indústria tão ampla. Convenhamos, uma das maiores verdades do documentário. A moça é linda e capaz de se sair bem ao microfone, mas infelizmente tem péssima presença de palco, carisma zero e retórica pobre, algo que nos deixa com a difícil incumbência de informa-la, com muito pesar, sobre a sua importância quase nula para a nossa história cultural.
Das imagens de arquivo destacam-se as aparições de artistas nos programas televisivos, principalmente o de Chacrinha, apresentador que inteligentemente aumentava a sua audiência ao levar os sucessos que estouravam na Bahia, e por tabela, numa relação mútua, promovia a carreira destes artistas e os alçavam para os interesses comerciais nacionais.
Houve quem reclamasse da ausência do povo nos depoimentos, bem como da abordagem de questões sociais. O cineasta reforçou, durante entrevistas, que não era o seu foco. No entanto, para o espectador cidadão, não apenas os que vivem de perto a realidade do carnaval de Salvador, mas as pessoas que acompanham a mídia e inserem-se como entes reflexivos no bojo dos acontecimentos cotidianos nacionais sabem que esta questão está latente no documentário, permeando cada depoimento e imagem retratada no eficiente exercício de revisionismo histórico do roteiro.
“É cada um por si e Deus pelo axé”, sintetiza Netinho, aparentemente ainda abalado pelos acontecimentos com a sua saúde, destino trágico que o tirou do mapa há alguns anos. De acordo com o documentário, nos anos 2000 a coisa perdeu o rumo. E é neste bloco que há o maior espaço para algumas alfinetadas. O que sobrevive atualmente é o esquema dos blocos e a ganância dos empresários (óbvia), somada a desunião de artistas locais, questões que parecem ter minado um movimento de caráter bastante popular, diferente da atual segregação que toma conta da capital baiana no mês de fevereiro e transforma tudo numa comemoração da “estratificação social de cada dia”.
Esta denúncia, por sua vez, nem é tão contemporânea. Desde os anos 1980 alguns blocos de carnaval exigiam fotografia e comprovante de residência dos foliões, como estratégia de barrar negros e pessoas pobres, afirmou o professor Paulo Miguez, do IHAC (Instituto de Humanidades da Universidade Federal da Bahia). O intelectual defende que os blocos afros, atualmente relegados apenas ao circuito Batatinha, de pouca visibilidade, devem ser apoiados com base em políticas culturais. Esta é apenas uma das polêmicas. De acordo com Alberto Pitta, presidente da Liga dos Blocos Afros, “o bolo que criamos cresceu, mas nós ganhamos a menor fatia”. O profissional aponta que existe a necessidade de democratizar a festa.
Há, também, como reflexão ausente, mas que tangencia a história, a questão dos cordeiros. No livro Trama dos Tambores, a autora dedica um capítulo a simbologia destes profissionais temporários que assumem o posto de guardiões das paredes invisíveis que segregam o carnaval de Salvador, manifestação máxima do gênero axé music. Apesar destas cobranças por parte das reflexões sobre o documentário que circula nas redes sociais e em algumas críticas de cunho autorizado (publicadas por profissionais da crítica cultural), não é preciso refletir em demasia para compreender que mesmo tangenciando o filme, seriam mais bem acopladas em um documentário sobre a história do carnaval. Estamos tratando, especificamente, do gênero axé music. O carnaval é algo anterior a este movimento, vale ressaltar, e já segregava muito antes do apogeu de artistas como Ivete Sangalo e Daniela Mercury.
De maneira circular a produção amarra bem as suas pontas. Ao hastear a bandeira de Luís Caldas no “monte do marco zero” do gênero, aponta o carismático Saulo Fernandes como uma promessa para o futuro e encerra o filme com os dois cantando Raiz de todo bem, numa apresentação bem calculada para o desfecho desta história contada em detalhes.
Axé – O Canto do Povo de Um Lugar tinha três horas e meia no primeiro corte. Foi uma tarefa árdua enxugar para os 110 minutos finais, afirmou Kertész. De fato o tema é amplo e até mesmo a linha do tempo cheia de retrospectivas, empregada com muita elegância, não conseguiu dar conta de uma história tão rica. Ainda nas palavras do cineasta, foi “apenas um recorte”. E esta consciência é que faz do filme algo com maior valor, pois circunda todo o projeto a sensação de paixão, segurança na abordagem e ânsia em contar uma história muito relevante para o patrimônio cultural brasileiro.
Como estamos diante da análise de um gênero internacionalizado, é possível que a produção alcance o merecido sucesso em terras estrangeiras. Em breve o filme vai ser lançado em Nova York e em Londres, e sem dúvida, circular por outros países e ganhar do devido reconhecimento. Os produtores de documentários, principalmente aqui no Brasil, um gênero cinematográfico quase diletante, haja vista o seu potencial fraquíssimo no que tange aos aspectos mercadológicos, deveriam buscar em Axé – Canto do Povo de Um Lugar a inspiração para contar as suas histórias, pois é raro encontrar uma produção capaz de contar uma história tão complexa de maneira atraente e diplomática.
“Sou apaixonado por documentários e assisto bastante”, afirmou o cineasta. “Quando você faz um documentário no Brasil, sabe que o público não é tão grande”, alegou Kertész, ciente da sua realidade. O realizador sabe que o filme pode não render muito por aqui, mas convenhamos, pode ser a produção que o coloque no mapa. E dentro deste território, basta aguardar qual será a próxima história que este cineasta iniciante tem para nos contar.
Axé – Canto do Povo de um Lugar – Brasil /2017
Direção: Chico Kertész