Paulo Fábio*
Nessa série de artigos evoquei casos exemplares de embates sobre tributos em Salvador, nos últimos 60 anos. Viu-se que o Município tem sido o elo mais fraco de uma corrente de poderes no âmbito da qual se trava os embates. Os outros elos são interesses empresariais relevantes na cidade e o Governo Estadual, que, trazido à arena como mediador, atuou, quase sempre, pressionando o município.
Não pude ser exaustivo nos exemplos, por falta de espaço ou de conhecimento sobre alguns casos. Lembra, por exemplo, o jurista Edvaldo Brito, um conflito de 1991, judicializado, como o atual, e também com participação da OAB. Podem ter havido outras omissões, mas creio ter dito o bastante para afirmar que: a) em contextos institucionais diversos, com ou sem autonomia política de Salvador, vigora, como regra informal de condutas na sociedade e na política, uma lógica hierárquica que inferioriza o poder municipal perante o estadual; b) a reiteração histórica dessa regra tem implicações cruciais sobre a efetiva autonomia política da capital.A ausência frequente de autonomia política nos legou descontinuidade administrativa (duração média dos mandatos de 2,7 anos, no período). E a regra informal fez o poder municipal falhar no principal desafio: adequar sua política e seus serviços às demandas dos cidadãos. O hiato entre cidade e política define uma modernidade "desurbana", na qual o município carece de legitimidade política, estrutura administrativa e base tributária. Mesmo hoje, após quase 30 anos de autonomia institucional, cobrança e, principalmente, reajuste de impostos seguem problemáticos. A sociedade que tem voz não reconhece na Prefeitura, ou na Câmara, autoridade para decidir sobre isso.Esse tabu explica porque o IPTU há 19 anos não tem alteração relevante na sua base de cálculo. Aprendendo, talvez, com desventuras anteriores, os dois prefeitos que antecederam o atual, com dois mandatos cada, não incluíram em suas pautas esse problema, cuja solução pode melhorar a gestão e fazer justiça. No caso de Imbassahy, gerente competente de uma autonomia legal que não se tornou factual, a retomada da modernização da cidade (interrompida, conforme o discurso do grupo então governante na Bahia, por gestões do PMDB e da esquerda), cumpriu-se com êxito, sem batalhas tributárias, pois sedou-se as finanças municipais, em estado crítico, com apoio material do Estado.Durante os mandatos de João Henrique, sem alinhamento estável com governadores - só com alianças sazonais com J. Wagner e o PT - a crônica enfermidade acabou agravada pela má gestão. O prefeito não enfrentou o problema tributário, limitando-se a pontuar a inevitabilidade nunca consumada de futuros ajustes, em declarações que oscilavam entre ameaça e queixa justificadora do caos. Era e é muito baixa a arrecadação de Salvador, comparada às de cidades de porte e condições análogas, como Recife e Fortaleza. No segundo mandato de JH, aumentaram as receitas de todos os municípios brasileiros, mas em Salvador a dificuldade histórica foi aprofundada. O prefeito não enfrentou a questão do IPTU e deixou passar a maré favorável, no Estado e na União.Na última campanha o tema teve tratamento raro e retórico. Falou-se em contenção de despesas, dinamização da arrecadação, combate à sonegação, fomento à atividade econômica. Entre as propostas e a realidade havia conexões de sentido, mas não senso de proporções. Não bastam para inverter a situação de dependência externa da receita municipal (55% são transferências estaduais e federais). É forçoso encarar o tabu, corrigindo injustiças que inibem progressividade social no IPTU.O atual embate mostra ser ilusão um aumento relevante da receita sem alteração do status quo tributário. Hoje, o fato de o prefeito ser neto de quem é não pode nublar outro: no tripé de poder que decide sobre impostos, o Município - seja qual for o prefeito, ou a maioria da Câmara - tende a cumprir, mais que seus contendores, um script sintonizado com justiça social.
* Professor de Ciência Política da Ufba
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