domingo, 1 de julho de 2012

Os moradores de Salvador usam pouco a cidade”


Texto: Ricardo Sangiovanni
Foto: Fernando Vivas

A cidade está “decadente”: virou uma “casa da mãe joana – grosseira, desordenada”. O diagnóstico é do antropólogo Antonio Risério, autor do recém-lançado livro A Cidade no Brasil, que reúne ensaios sobre a história das sociedades urbanas no mundo e a influência de cada uma na formação das cidades brasileiras. Nos ensaios, Risério costura, com inteligência e astúcia retórica, uma miríade de referências, que vão de Darcy Ribeiro a Zygmunt Bauman, para dar a própria versão sobre a origem das cidades no Brasil e quais os desafios a enfrentar. Nesta entrevista, o foco é a cidade do Salvador. Político – foi um dos articuladores do Ministério da Cultura de Gilberto Gil (PV) e, atualmente, integra a cúpula da campanha de Fernando Haddad (PT) à Prefeitura de São Paulo –, Risério não poupa os atuais gestores baianos. “Hoje, eles não são capazes de distinguir entre um poste e um aquário”.
Hoje em dia, nas rodas de conversa entre amigos, chega sempre uma hora em que alguém diz: “Olha, Salvador está…” e seguem-se os piores adjetivos: malcuidada, engarrafada, desordenada, deprimida… Esse pessimismo é de agora, ou sempre nos referimos à cidade assim?
Essa postura é bem recente. Durante muito tempo, Salvador – a Bahia, como se dizia – ocupou lugar e função de mito no imaginário brasileiro. E os naturais daqui a celebravam em termos bem narcisistas. Salvador tinha história, beleza urbana e natural, uma cultura forte e um povo gentil e sedutor – era assim que a cidade se apresentava. Hoje, o espaço narcísico se estilhaçou. Salvador é grosseira, poluída e degradada. Uma cidade sem comando e sem planejamento, transformada em casa da mãe joana, vivendo um amplo processo de deterioração física e simbólica. Coisa que vem se acentuando da década de 1990 para cá.
O que significa o “regime colonial do espírito” das cidades litorâneas, expressão usada por Euclydes da Cunha que você cita no livro? Salvador sofre desse mal?
Não devemos confundir abertura crítica com mera cópia do que vem de fora. A abertura é sempre enriquecedora. A cópia é atestado óbvio de capachismo mental. Euclydes falava das “cidades copistas” do litoral, vivendo sob o regime colonial do espírito. E a gente vê isso, hoje, em todos os campos e direções. Exibimos o aspecto de cidade provincianamente voltada para si mesma, fechada às informações do mundo.
Você costuma dizer que a atual população de Salvador não está à altura da cidade que recebeu. Caímos de novo no mesmo “isolamento” provinciano que a Bahia viveu por mais de um século depois que deixou de ser capital da colônia?
Digo, de uma forma ampla e genérica, que a população atual de Salvador não está à altura da cidade que recebeu de seus antepassados. Se estivesse, não estaria promovendo a avacalhação de tudo. No plano “cultural”, aqui, depois da geração de Jorge e Caymmi, tivemos a criação da Universidade da Bahia, sob o comando de Edgard Santos. Nesse período, a Bahia se afirmou como espaço de vanguarda. E jovens criados ali acabaram revolucionando a cultura brasileira, com os movimentos do Cinema Novo e do Tropicalismo. É uma onda forte, que vem da década de 1950 à de 1970. Depois disso, o que começou a predominar foi a autocomplacência, a desinformação, a redundância. Para sair da mesmice e do mormaço, precisamos de mais rigor e de uma aposta clara no campo da inquietude, da inovação, do experimentalismo. Precisamos apostar além dos mecanismos de consagração do mercado.
Com a expansão da classe C, um virtual aumento de demandas típicas das classes médias – fluidez do trânsito, educação de qualidade, mais opções de lazer – pode mudar os rumos da cidade?
Em princípio, é o que se espera, mas não é certo. Na Bahia, como em outros lugares, espera-se que a ascensão social abra novos caminhos educacionais e informacionais e que, com isso, as pessoas tenham outro polimento, outro brilho. Mas será? Se nossas elites são ignorantes, grosseiras e irresponsáveis, se não sabem lidar com a cidade, se chegam a ser caso de polícia em seu total desrespeito pelo espaço público, como esperar que uma nova classe média, buscando se assemelhar a tais elites, possa melhorar alguma coisa por aqui? É claro que temos de romper, transcender o círculo de ferro da subcidadania, mas isso só será realmente feito por meio de uma grande e radical transformação social e cultural. Ainda que feita de forma gradual, sem ansiedade.
A classe média de Salvador migra das ruas do Centro para os shoppings a partir dos anos 1980. É possível trazer a classe média de volta às ruas, ou estamos condenados à era dos shoppings?
Repito que precisamos de uma grande transformação social, educacional e cultural. Como você vai voltar às ruas, se não pode andar por elas? Se a classe média foi expulsa das calçadas por marginais de calibre variado? Além disso, os moradores de Salvador, hoje em dia, usam muito pouco a cidade, por vários motivos – e o principal deles, até mais do que a segurança, é mesmo a decadência. Cariocas e paulistas usam muito mais suas cidades do que nós. Veja o caso da orla. Aqui ao lado, em Aracaju e Recife, por exemplo, as pessoas circulam a pé pela orla, da manhã à noite. E nós como que fugimos da linha de nosso litoral. Precisamos de obras, de intervenções de qualidade, claro. Ainda que a grande questão seja diminuir as desigualdades sociais e incrementar os combustíveis da informação.
A influência da cultura negra na arquitetura de Salvador é menor do que em outras formas de expressão, como a música, a língua, a culinária? Por quê?
Para usar seus próprios exemplos (música, língua, culinária), ouvimos o ijexá dos afoxés, cantamos palavras nagôs ou bantas para os orixás, temos uma cozinha sob o signo do dendê. Mas não há nada de semelhante a isso no campo da arquitetura. Nesse particular, os escravos não impuseram nem disseminaram modelos de extração africana. Nem teriam poder suficiente para construir cidades ou bairros à maneira do que conheciam na África. Mesmo nos quilombos, não o fizeram. Os arraiais de Palmares eram tipicamente luso-brasileiros, com capela na pracinha. O que houve, por parte dos africanos e de seus descendentes mestiços, aqui no Brasil, foi uma adesão aos padrões urbanísticos e modelos construtivos da classe dirigente. Aliás, ex-escravos, ao retornar à África, levaram a arquitetura colonial brasileira para lá. Fizeram sobrados na Nigéria, por exemplo.
Por que você afirma que terreiros de candomblé não são “arquitetura africana”?
Porque arquitetura não é só conceito, mas, sobretudo, objeto produzido materialmente. A “africanidade” dos terreiros está no seu interior, na espécie de imantação dos cômodos etc., mas não na linguagem arquitetônica, na expressão plástica das casas. Você tem um lugar onde são cultuados orixás, inquices ou voduns – isso é de extração africana. Já a casa onde tais cultos se realizam, não. É a casa popular brasileira, de origem lusitana, com variações tropicais. Arquitetonicamente brasileira (e nunca africana), por exemplo, é a Casa de Xangô, na roça do Retiro, no Opô Afonjá. Compare-se com o santuário de Oxum em Oxogbô, na África – a diferença é total. Ali, sim, temos arquitetura africana, absolutamente singular, materializando-se numa espécie de templo-vulva.
Você conta no livro que, há 350 anos, 30 pessoas morreram num desabamento de encosta em Salvador. E que, em seguida, houve discursos pedindo obras de contenção. Será que daqui a 350 anos nossas tragédias urbanas serão iguais?
Nem mesmo sei se esta cidade ainda vai existir daqui a 350 anos. Se ficar por conta de nossos atuais governantes, vai ser difícil resistir tanto. Mas admitamos que sim. E aí é preciso acreditar que as coisas vão mudar, mesmo que agora seja a própria cidade, em seu conjunto, que está se convertendo em vasta tragédia urbana. Não é mais um deslizamento aqui, um congestionamento ali, um desabamento acolá – agora, é a cidade inteira que está naufragando. Mas a verdade é que, ao longo de nossa história, já demos belos exemplos de altivez e criatividade, superando revezes e crises. E temos de recuperar isso para nos reinventar e seguir adiante. Uma missão que cabe ao conjunto da população, já que devemos confiar cada vez menos nesse bando de charlatães e corruptos que, salvo raríssimas exceções, são os políticos profissionais. Eles não estão interessados na cidade, mas na jogatina deles.
Diz-se que a Copa de 2014 é a grande chance de modernização das cidades. Salvador está aproveitando?
Projetos como os da Via Atlântica, da Linha Viva e da Via Histórica tinham realmente de ser feitos. A reconfiguração do Comércio, também. Além disso, temos de recuperar, ou reconstruir, obras relevantes que estão hoje abandonadas, caindo aos pedaços, e tomar conta do patrimônio histórico-cultural da cidade. A Colômbia faz isso maravilhosamente – e a gente, não: seremos assim tão mais pobres que a Colômbia? Mas vejam o que estão nos apresentando, fazendo ou dizendo que vão fazer… Entre a Via Expressa, típico produto do que chamo de “mentalidade minhocão”, e o tal do metrô da Paralela (com a propaganda, afrontosamente mentirosa, de “um metrô dentro do bosque”), só vejo coisas que vão contribuir, fortemente, para esculhambar a cidade. Com uma delicadeza de estuprador.
Miami, Leblon e Copacabana são os modelos de “bonito” que a prefeitura tem para a orla de Salvador. Para o Centro, o governo tem um plano de reabilitação que peleja para sair do papel. É mais grave a falta de um plano ou a falta de execução dos planos que existem?
Depende. Às vezes, a falta de projetos e de dinheiro para executá-los pode ser uma bênção. É, mais ou menos, a situação em que nos encontramos atualmente: se os governantes tivessem verbas substanciosas, a cidade correria o risco de uma degringolada definitiva. O sujeito que, com pouco dinheiro, só tem como fazer porcarias pequenas, com muito dinheiro pode fazer porcarias enormes. Em matéria de arquitetura e urbanismo, os governantes da Bahia, hoje, não são capazes de distinguir entre um poste e um aquário. Ou entre uma roseira e um extintor de incêndio.
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