Em entrevista, o cientista político Paulo Fábio Dantas Neto, (foto), professor da Universidade Federal da Bahia, analisa o momento político de Salvador à luz da sua história recente e nos ajuda a entender a dimensão do caos político, administrativo e urbano em que estamos mergulhados.
B: Como você vê o atual momento político de Salvador?
Paulo Fábio: Para ser compreendida a situação de orfandade política em que Salvador se encontra, devemos analisar não apenas o comportamento do atual prefeito, mas, sobretudo, as estratégias dos partidos com influência no município, que há muito tempo vêm sendo omissos, renunciatários, quanto a encarar Salvador como lugar que mereça que a ele se dedique estratégias políticas e administrativas específicas. Há muitos anos Salvador é tratada como mero degrau da disputa estadual, trampolim que pode levar ao poder estadual.
B: Você poderia exemplificar?
Paulo Fábio: A cidade já pagou preço alto por isso, em passado mais ou menos recente. Lembro a convergência de forças políticas de esquerda, e de quase toda a oposição da época, em apoio à pretensão de Mário Kertesz de tornar-se, como se tornou, o candidato a prefeito, em 1985, pelo PMDB, que era então uma ampla frente e a principal legenda de oposição. Aquela foi a primeira eleição direta para prefeitos de capitais após a ditadura e o quadro pré-eleitoral de então indicava que o PMDB tinha, em Salvador, tanta margem de manobra, que o candidato que indicasse teria amplas chances de vencer, com larga vantagem.
B: Por que escolher Kertész como candidato das oposições, tendo em vista sua trajetória política construída ao lado de ACM? (Quando este foi prefeito de Salvador, Kertész, então com 22 anos, foi o chefe de gabinete da Secretaria da Fazenda. Na primeira gestão de ACM como governador da Bahia (1971-1975), Kertész foi o primeiro titular da Secretaria do Planejamento, Ciência e Tecnologia. Foi chefe de gabinete de ACM, quando este era presidente da Eletrobrás, entre 1975 e 1978, e prefeito nomeado de Salvador (1979-1981) por ACM em seu segundo governo).
Paulo Fábio: É preciso lembrar que Mário Kertész rompeu estrepitosamente com o carlismo, fato que gerou grande repercussão política na cidade. Em seguida, ligou-se ao PMDB e, em 1982, conseguiu fazer de sua então esposa, Eliana Kertész, a vereadora mais votada da história de Salvador. O projeto prioritário dos partidos de oposição naquele momento era a eleição do próximo governador, em 1986.
Acreditou-se à época que Mário Kertesz era imprescindível para este projeto, pois não se previa a vitória de Waldir com tanta folga, como acabaria ocorrendo. Então Salvador foi “rifada”, do ponto de vista político em nome da disputa estadual e, em razão do objetivo político considerado maior, de viabilizar a eleição de Waldir Pires em 1986, sacrificou-se aspirações e interesses que poderiam (ou não) significar alternativas novas para a cidade. Kertész voltou assim à prefeitura, seu alinhamento político real foi sendo aos poucos delineado e já se tornava mais claro cerca de um ano depois. Terminou apoiando Waldir (um tanto discretamente), mas seu arco de alianças na prefeitura orientou-se a um conjunto de forças mais conservadoras.
B: Que efeitos teve isso sobre a gestão da cidade?
Paulo Fábio: Kertész tomou iniciativas interessantes, como a adoção de uma política cultural e o desenvolvimento de um conceito sobre o urbano, cuja direção era polêmica, mas não se pode negar que houve ali um esforço de pensar a cidade; mas ao mesmo tempo foi uma experiência pródiga no trato com o erário, agravando, com dívidas, obras inconclusas e escassa transparência, a já precária situação financeira da Prefeitura, com a qual seus sucessores tiveram dificuldades de lidar.
Além disso, Kertész possuía compreensão absolutamente vertical da atividade política, o que tem a ver, naturalmente, com a escola em que se formou. Foram desmontados alguns mecanismos de participação política criados durante a gestão anterior, de Manoel Castro. Apesar de ter sido este um prefeito nomeado, os mecanismos foram criados em razão da força da bancada oposicionista do PMDB na Câmara, amplamente majoritária e cujo tom de atuação era dado pelos seus segmentos à esquerda, o que levara Manoel Castro a negociação com o Legislativo e também com um conjunto de associações e entidades comunitárias. O Conselho Municipal de Transportes e o Conselho de Desenvolvimento Urbano (Condurb) são exemplos desses novos espaços institucionais, que se tornariam letra morta durante o segundo mandato de Kertész.
Isto revela, de um lado, a fragilidade e mesmo a relativa artificialidade do então chamado movimento popular de Salvador e, de outro lado, um estilo autocrático de gestão da cidade, que tinha pouco a ver com o empuxo do PMDB, naquela época imediatamente pós-ditadura.
B: A submissão da política de Salvador à política estadual repetiria-se depois?
Paulo Fábio: Para abreviarmos posso dizer que nas eleições municipais de 2004 e 2008 a mesma lógica foi revivida. É bom lembrar as condições em que João Henrique se elegeu em 2004: era um deputado de nicho eleitoral, conhecido da população por combater taxas e impostos de qualquer natureza, por acionar freqüentemente o Ministério Público e buscar liminares na Justiça. Tornou-se um nome de algum destaque e apresentava certa vantagem na competição com o campo carlista, que não tinha nomes fortes para suceder ao então prefeito Imbassahy, um carlista bem avaliado como gestor.
No campo da situação estadual o candidato acabou sendo César Borges. Por sua vez, a chamada esquerda ficou dividida, embora houvesse, nas tendências do eleitorado, condições da competição que lhe eram relativamente favoráveis, após o início da chamada “Era Lula”. O PT lançou Nelson Pelegrino e o PSB, Lídice da Mata, em aliança com o PMDB, já então partido de Geddel Vieira Lima. Houve ainda a candidatura independente do ex-carlista Benito Gama, que se mostrou eleitoralmente inexpressiva.
Mais uma vez, a prioridade dos partidos da chamada esquerda, que tinham maior densidade eleitoral em Salvador, era a eleição ao Governo do Estado, dali a dois anos e que acabaria sendo vencida por Jacques Wagner. Lídice da Mata e Nelson Pelegrino chegaram a dizer, em seus horários eleitorais, que tanto fazia o eleitor votar em um deles como em João Henrique, pois o importante era derrotar Borges, quer dizer, o carlismo. João Henrique passou a campanha toda voando em céu de brigadeiro. Em nenhum momento foi instado a assumir compromissos substantivos.
B: Nenhum candidato revelou ter projeto político e concepção urbana para o desenvolvimento da cidade?
Paulo Fábio: Creio que o problema não é faltar projeto (projetos não governam) e sim o sentido renunciatário das estratégias políticas em relação a Salvador. A chamada esquerda, a meu ver, não entrou pra valer na campanha de 2004, ou, ao menos, não entrou como poderia ter entrado.
Para a ex-prefeita Lídice, o que mais importou foi fazer daquelas eleições uma ocasião para resgatar sua imagem perante o eleitorado, o que fez com êxito. Mas em nenhum instante se colocou como alguém que estava, de fato, disposta a um confronto de segundo turno, caso esse confronto se desse contra Joâo Henrique.
E ao PT, o que mais interessava era a frente contra o carlismo, uma aliança para a eleição de Wagner em 2006, conciliada com o objetivo de ampliar a sustentação política do governo Lula. Houve até almoço de ACM e com o seu candidato, César Borges no Palácio do Planalto às vésperas das eleições de prefeito, evento quase social cujo único efeito político real foi diminuir a credibilidade de Pelegrino como candidato de oposição.
Disso tudo beneficiou-se João Henrique, que adquiriu tais credenciais a baixo custo, bastando repetir afirmações vazias de conteúdo como a de que iria fazer o que fosse “bom” e evitar o que fosse “mau” para a cidade. Era evidente a existência de um vácuo político. Salvador foi politicamente rifada, como ocorrera no tempo de Mário Kertész. E em vez de segundo turno contra João Henrique, o que a esquerda disputou foi o passe do pai do prefeito eleito, que em 2006 se integraria, como candidato ao Senado, à chapa de Wagner.
Uma vez prefeito, João Henrique continuou a ser o outsider de sempre. Mostra-se incapaz de gerir a crise financeira da prefeitura e, livrando-se do PSDB (seu aliado eleitoral em 2004) busca se sustentar aproximando-se do governo Lula. Quando, apesar disso, descia a ladeira recebeu abrigo no PMDB, partido que integrava a base de Wagner e logo integraria a de Lula. As contradições da sua gestão com o PT municipal acirraram, mas a estratégia do governo estadual foi abafá-las. O PT só saiu do governo de João Henrique pouco tempo antes do início do processo eleitoral de 2008. E pagou caro por isso, no debate eleitoral.
Em nome da governabilidade e do projeto estadual, o PT foi à campanha de 2008, mais uma vez, com pés de chumbo. Meses antes do primeiro turno das eleições,Wagner insistia numa equidistância entre três candidatos da sua base (Imbassahy/PSDB, João Henrique/PMDB e o do PT, que depois de muita delonga, acabou sendo Walter Pinheiro).
O governador mudou de atitude na reta final, mas a fila anda e àquela altura João já trocara lágrimas e telhado de vidro, por verbo afiado e costas largas. Repetiu-se, assim 2004 em 2008 e João Henrique se reelegeu graças à predominância da lógica da política estadual, por duas vias: pela do PT, já comentada e também pela do PMDB, pois João foi ali abrigado pelo ministro Geddel porque fazer o prefeito de Salvador era acicate fundamental para a candidatura do segundo ao governo em 2010. Faltaram, mais uma vez, forças políticas em Salvador que centrassem foco na cidade, no enfrentamento político de seus problemas.
B: Esta falta histórica de compromisso com a cidade acaba oferecendo campo aberto para gestões irresponsáveis como a de João Henrique e de outros prefeitos de Salvador.
Paulo Fábio: A degradação urbana que se vive hoje em Salvador resulta, em grande parte, da falta de estratégias políticas para a cidade, criando tereno propício a aventureirismos políticos e a uma gestão atrabiliária, incapaz de fazer face aos problemas financeiros do poder municipal e de dotá-lo de um planejamento com sentido público. Gestão leniente para com o capital predatório, que há em todo lugar e pontifica onde não é monitorado e contido por uma política pública.
B: E como você vê o ambiente para as próximas eleições?
Paulo Fábio: Para 2012 não estou vendo no horizonte alteração positiva neste cenário. Quem assumirá a bandeira da oposição ao governo de João Henrique,
apontando um caminho de mobilidade política para a cidade? Os partidos não se apresentam para tal e parecem achar que têm direito a uma anistia por esse pecado de omissão porque se declaram engajados na tal mobilidade urbana, senha para aventuras mercantis que têm como horizonte 2014 e não 2012. Pior que das outras vezes, o calendário que comanda a política municipal não é estadual, nem sequer político, mas puramente empresarial. A política se esconde na Copa de 2014.
Neste momento, o PT, em sua política de copa e cozinha, faz oposição de fachada ao prefeito. Está o tempo todo constrangido pela estratégia da política estadual, que quer incorporar o prefeito nos acordos. O virtual candidato do partido, Nelson Pelegrino, corre risco de tornar-se um gato pardo, indiferenciado entre os demais, no saco do governismo federal e estadual. Apesar do seu bom mocismo (ou até por causa dele) parece-me próxima de zero a chance de nele Wagner colocar suas fichas. Seguirão moucos os ouvidos do palácio se o pré-candidato não forjar, na opinião pública e, em seguida, no eleitorado, a idéia de que é oposição ao que aí está na Prefeitura e porta- voz de algo diferente, com identidade política concernente ao que durante muito tempo foi o mote retórico da dita esquerda: práticas republicanas na sociedade política e movimentacionismo na sociedade civil. Idéia oposta à que hoje cultiva, que é conservar um ambiente político aclamativo à política do saco de gatos pardos.
A senadora Lídice da Mata – apesar da sua estatura eleitoral e da situação confortável de ter agora oito anos de mandato de senadora o que, em tese, lhe permitiria correr riscos – também não se arvora a liderar uma oposição a João Henrique porque o seu PSB está preso a interesses no (e a compromissos com o) governo estadual; o PC do B ameaça com uma candidatura mas, diante do histórico do partido, é pouco provável que seja realmente para valer; o DEM permanece na prefeitura, pelas beiradas, embora finja que não; o ex-prefeito Imbassahy, do PSDB, tem como trunfo a experiência de gestão bem avaliada, mas tem também forte viés tecnocrático e clara dificuldade em formular discurso político. E o PMDB não tem crédito acumulado para fazer discurso de oposição, pois antes terá que explicar o que há de diferente entre o João Henrique de hoje e aquele que, em 2008, o partido retirou do sopé da ladeira para recolocar no topo.
O quadro é de indigência política lamentável. O campo da situação é controlado hoje pelo PP de João Leão, mediante um arranjo que possibilita um gerenciamento político-empresarial de interesses neófitos na política da capital, exercido, com apetite, em combinação com o ministério ocupado pelo partido, com a estratégia do governador e com a rendição mais geral do mundo político às leis de mercado.
E na oposição, a ausência de palavra política consistente levou o vácuo a ponto tal que se cogita retorno à hipótese de candidatura de uma personalidade midiática. Mário Kertesz jura que descarta, mas se mudasse de idéia, não seria, nas atuais circunstâncias, um revival de sua performance de 1985; embora sua personalidade seja bem diferente, a lembrança do seu nome agora alude mais à situação de vácuo que propiciou, em 1988, a eleição de Fernando José. A situação eleitoral é outra, as chances de um outsider midiático são menores, mas nada indica que isso seja um dado animador. A simples cogitação de um outsider depois de oito anos de sofrimento com as peripécias de um deles revela o buraco político em que estamos metidos. * Entrevista publicada originalmente no blog Bahia na Rede - http://blogbahianarede.wordpress.com
B: Como você vê o atual momento político de Salvador?
Paulo Fábio: Para ser compreendida a situação de orfandade política em que Salvador se encontra, devemos analisar não apenas o comportamento do atual prefeito, mas, sobretudo, as estratégias dos partidos com influência no município, que há muito tempo vêm sendo omissos, renunciatários, quanto a encarar Salvador como lugar que mereça que a ele se dedique estratégias políticas e administrativas específicas. Há muitos anos Salvador é tratada como mero degrau da disputa estadual, trampolim que pode levar ao poder estadual.
B: Você poderia exemplificar?
Paulo Fábio: A cidade já pagou preço alto por isso, em passado mais ou menos recente. Lembro a convergência de forças políticas de esquerda, e de quase toda a oposição da época, em apoio à pretensão de Mário Kertesz de tornar-se, como se tornou, o candidato a prefeito, em 1985, pelo PMDB, que era então uma ampla frente e a principal legenda de oposição. Aquela foi a primeira eleição direta para prefeitos de capitais após a ditadura e o quadro pré-eleitoral de então indicava que o PMDB tinha, em Salvador, tanta margem de manobra, que o candidato que indicasse teria amplas chances de vencer, com larga vantagem.
B: Por que escolher Kertész como candidato das oposições, tendo em vista sua trajetória política construída ao lado de ACM? (Quando este foi prefeito de Salvador, Kertész, então com 22 anos, foi o chefe de gabinete da Secretaria da Fazenda. Na primeira gestão de ACM como governador da Bahia (1971-1975), Kertész foi o primeiro titular da Secretaria do Planejamento, Ciência e Tecnologia. Foi chefe de gabinete de ACM, quando este era presidente da Eletrobrás, entre 1975 e 1978, e prefeito nomeado de Salvador (1979-1981) por ACM em seu segundo governo).
Paulo Fábio: É preciso lembrar que Mário Kertész rompeu estrepitosamente com o carlismo, fato que gerou grande repercussão política na cidade. Em seguida, ligou-se ao PMDB e, em 1982, conseguiu fazer de sua então esposa, Eliana Kertész, a vereadora mais votada da história de Salvador. O projeto prioritário dos partidos de oposição naquele momento era a eleição do próximo governador, em 1986.
Acreditou-se à época que Mário Kertesz era imprescindível para este projeto, pois não se previa a vitória de Waldir com tanta folga, como acabaria ocorrendo. Então Salvador foi “rifada”, do ponto de vista político em nome da disputa estadual e, em razão do objetivo político considerado maior, de viabilizar a eleição de Waldir Pires em 1986, sacrificou-se aspirações e interesses que poderiam (ou não) significar alternativas novas para a cidade. Kertész voltou assim à prefeitura, seu alinhamento político real foi sendo aos poucos delineado e já se tornava mais claro cerca de um ano depois. Terminou apoiando Waldir (um tanto discretamente), mas seu arco de alianças na prefeitura orientou-se a um conjunto de forças mais conservadoras.
B: Que efeitos teve isso sobre a gestão da cidade?
Paulo Fábio: Kertész tomou iniciativas interessantes, como a adoção de uma política cultural e o desenvolvimento de um conceito sobre o urbano, cuja direção era polêmica, mas não se pode negar que houve ali um esforço de pensar a cidade; mas ao mesmo tempo foi uma experiência pródiga no trato com o erário, agravando, com dívidas, obras inconclusas e escassa transparência, a já precária situação financeira da Prefeitura, com a qual seus sucessores tiveram dificuldades de lidar.
Além disso, Kertész possuía compreensão absolutamente vertical da atividade política, o que tem a ver, naturalmente, com a escola em que se formou. Foram desmontados alguns mecanismos de participação política criados durante a gestão anterior, de Manoel Castro. Apesar de ter sido este um prefeito nomeado, os mecanismos foram criados em razão da força da bancada oposicionista do PMDB na Câmara, amplamente majoritária e cujo tom de atuação era dado pelos seus segmentos à esquerda, o que levara Manoel Castro a negociação com o Legislativo e também com um conjunto de associações e entidades comunitárias. O Conselho Municipal de Transportes e o Conselho de Desenvolvimento Urbano (Condurb) são exemplos desses novos espaços institucionais, que se tornariam letra morta durante o segundo mandato de Kertész.
Isto revela, de um lado, a fragilidade e mesmo a relativa artificialidade do então chamado movimento popular de Salvador e, de outro lado, um estilo autocrático de gestão da cidade, que tinha pouco a ver com o empuxo do PMDB, naquela época imediatamente pós-ditadura.
B: A submissão da política de Salvador à política estadual repetiria-se depois?
Paulo Fábio: Para abreviarmos posso dizer que nas eleições municipais de 2004 e 2008 a mesma lógica foi revivida. É bom lembrar as condições em que João Henrique se elegeu em 2004: era um deputado de nicho eleitoral, conhecido da população por combater taxas e impostos de qualquer natureza, por acionar freqüentemente o Ministério Público e buscar liminares na Justiça. Tornou-se um nome de algum destaque e apresentava certa vantagem na competição com o campo carlista, que não tinha nomes fortes para suceder ao então prefeito Imbassahy, um carlista bem avaliado como gestor.
No campo da situação estadual o candidato acabou sendo César Borges. Por sua vez, a chamada esquerda ficou dividida, embora houvesse, nas tendências do eleitorado, condições da competição que lhe eram relativamente favoráveis, após o início da chamada “Era Lula”. O PT lançou Nelson Pelegrino e o PSB, Lídice da Mata, em aliança com o PMDB, já então partido de Geddel Vieira Lima. Houve ainda a candidatura independente do ex-carlista Benito Gama, que se mostrou eleitoralmente inexpressiva.
Mais uma vez, a prioridade dos partidos da chamada esquerda, que tinham maior densidade eleitoral em Salvador, era a eleição ao Governo do Estado, dali a dois anos e que acabaria sendo vencida por Jacques Wagner. Lídice da Mata e Nelson Pelegrino chegaram a dizer, em seus horários eleitorais, que tanto fazia o eleitor votar em um deles como em João Henrique, pois o importante era derrotar Borges, quer dizer, o carlismo. João Henrique passou a campanha toda voando em céu de brigadeiro. Em nenhum momento foi instado a assumir compromissos substantivos.
B: Nenhum candidato revelou ter projeto político e concepção urbana para o desenvolvimento da cidade?
Paulo Fábio: Creio que o problema não é faltar projeto (projetos não governam) e sim o sentido renunciatário das estratégias políticas em relação a Salvador. A chamada esquerda, a meu ver, não entrou pra valer na campanha de 2004, ou, ao menos, não entrou como poderia ter entrado.
Para a ex-prefeita Lídice, o que mais importou foi fazer daquelas eleições uma ocasião para resgatar sua imagem perante o eleitorado, o que fez com êxito. Mas em nenhum instante se colocou como alguém que estava, de fato, disposta a um confronto de segundo turno, caso esse confronto se desse contra Joâo Henrique.
E ao PT, o que mais interessava era a frente contra o carlismo, uma aliança para a eleição de Wagner em 2006, conciliada com o objetivo de ampliar a sustentação política do governo Lula. Houve até almoço de ACM e com o seu candidato, César Borges no Palácio do Planalto às vésperas das eleições de prefeito, evento quase social cujo único efeito político real foi diminuir a credibilidade de Pelegrino como candidato de oposição.
Disso tudo beneficiou-se João Henrique, que adquiriu tais credenciais a baixo custo, bastando repetir afirmações vazias de conteúdo como a de que iria fazer o que fosse “bom” e evitar o que fosse “mau” para a cidade. Era evidente a existência de um vácuo político. Salvador foi politicamente rifada, como ocorrera no tempo de Mário Kertész. E em vez de segundo turno contra João Henrique, o que a esquerda disputou foi o passe do pai do prefeito eleito, que em 2006 se integraria, como candidato ao Senado, à chapa de Wagner.
Uma vez prefeito, João Henrique continuou a ser o outsider de sempre. Mostra-se incapaz de gerir a crise financeira da prefeitura e, livrando-se do PSDB (seu aliado eleitoral em 2004) busca se sustentar aproximando-se do governo Lula. Quando, apesar disso, descia a ladeira recebeu abrigo no PMDB, partido que integrava a base de Wagner e logo integraria a de Lula. As contradições da sua gestão com o PT municipal acirraram, mas a estratégia do governo estadual foi abafá-las. O PT só saiu do governo de João Henrique pouco tempo antes do início do processo eleitoral de 2008. E pagou caro por isso, no debate eleitoral.
Em nome da governabilidade e do projeto estadual, o PT foi à campanha de 2008, mais uma vez, com pés de chumbo. Meses antes do primeiro turno das eleições,Wagner insistia numa equidistância entre três candidatos da sua base (Imbassahy/PSDB, João Henrique/PMDB e o do PT, que depois de muita delonga, acabou sendo Walter Pinheiro).
O governador mudou de atitude na reta final, mas a fila anda e àquela altura João já trocara lágrimas e telhado de vidro, por verbo afiado e costas largas. Repetiu-se, assim 2004 em 2008 e João Henrique se reelegeu graças à predominância da lógica da política estadual, por duas vias: pela do PT, já comentada e também pela do PMDB, pois João foi ali abrigado pelo ministro Geddel porque fazer o prefeito de Salvador era acicate fundamental para a candidatura do segundo ao governo em 2010. Faltaram, mais uma vez, forças políticas em Salvador que centrassem foco na cidade, no enfrentamento político de seus problemas.
B: Esta falta histórica de compromisso com a cidade acaba oferecendo campo aberto para gestões irresponsáveis como a de João Henrique e de outros prefeitos de Salvador.
Paulo Fábio: A degradação urbana que se vive hoje em Salvador resulta, em grande parte, da falta de estratégias políticas para a cidade, criando tereno propício a aventureirismos políticos e a uma gestão atrabiliária, incapaz de fazer face aos problemas financeiros do poder municipal e de dotá-lo de um planejamento com sentido público. Gestão leniente para com o capital predatório, que há em todo lugar e pontifica onde não é monitorado e contido por uma política pública.
B: E como você vê o ambiente para as próximas eleições?
Paulo Fábio: Para 2012 não estou vendo no horizonte alteração positiva neste cenário. Quem assumirá a bandeira da oposição ao governo de João Henrique,
apontando um caminho de mobilidade política para a cidade? Os partidos não se apresentam para tal e parecem achar que têm direito a uma anistia por esse pecado de omissão porque se declaram engajados na tal mobilidade urbana, senha para aventuras mercantis que têm como horizonte 2014 e não 2012. Pior que das outras vezes, o calendário que comanda a política municipal não é estadual, nem sequer político, mas puramente empresarial. A política se esconde na Copa de 2014.
Neste momento, o PT, em sua política de copa e cozinha, faz oposição de fachada ao prefeito. Está o tempo todo constrangido pela estratégia da política estadual, que quer incorporar o prefeito nos acordos. O virtual candidato do partido, Nelson Pelegrino, corre risco de tornar-se um gato pardo, indiferenciado entre os demais, no saco do governismo federal e estadual. Apesar do seu bom mocismo (ou até por causa dele) parece-me próxima de zero a chance de nele Wagner colocar suas fichas. Seguirão moucos os ouvidos do palácio se o pré-candidato não forjar, na opinião pública e, em seguida, no eleitorado, a idéia de que é oposição ao que aí está na Prefeitura e porta- voz de algo diferente, com identidade política concernente ao que durante muito tempo foi o mote retórico da dita esquerda: práticas republicanas na sociedade política e movimentacionismo na sociedade civil. Idéia oposta à que hoje cultiva, que é conservar um ambiente político aclamativo à política do saco de gatos pardos.
A senadora Lídice da Mata – apesar da sua estatura eleitoral e da situação confortável de ter agora oito anos de mandato de senadora o que, em tese, lhe permitiria correr riscos – também não se arvora a liderar uma oposição a João Henrique porque o seu PSB está preso a interesses no (e a compromissos com o) governo estadual; o PC do B ameaça com uma candidatura mas, diante do histórico do partido, é pouco provável que seja realmente para valer; o DEM permanece na prefeitura, pelas beiradas, embora finja que não; o ex-prefeito Imbassahy, do PSDB, tem como trunfo a experiência de gestão bem avaliada, mas tem também forte viés tecnocrático e clara dificuldade em formular discurso político. E o PMDB não tem crédito acumulado para fazer discurso de oposição, pois antes terá que explicar o que há de diferente entre o João Henrique de hoje e aquele que, em 2008, o partido retirou do sopé da ladeira para recolocar no topo.
O quadro é de indigência política lamentável. O campo da situação é controlado hoje pelo PP de João Leão, mediante um arranjo que possibilita um gerenciamento político-empresarial de interesses neófitos na política da capital, exercido, com apetite, em combinação com o ministério ocupado pelo partido, com a estratégia do governador e com a rendição mais geral do mundo político às leis de mercado.
E na oposição, a ausência de palavra política consistente levou o vácuo a ponto tal que se cogita retorno à hipótese de candidatura de uma personalidade midiática. Mário Kertesz jura que descarta, mas se mudasse de idéia, não seria, nas atuais circunstâncias, um revival de sua performance de 1985; embora sua personalidade seja bem diferente, a lembrança do seu nome agora alude mais à situação de vácuo que propiciou, em 1988, a eleição de Fernando José. A situação eleitoral é outra, as chances de um outsider midiático são menores, mas nada indica que isso seja um dado animador. A simples cogitação de um outsider depois de oito anos de sofrimento com as peripécias de um deles revela o buraco político em que estamos metidos. * Entrevista publicada originalmente no blog Bahia na Rede - http://blogbahianarede.wordpress.com
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