Pedro Lyra o chamava de “O maluco”.
Maluco, no seu caso, era elogio.
Marcus Accioly*
Dono de uma agressiva irreverência, Ildásio (como, aliás, todo poeta) não poupava ninguém. Fazendo jus à tradição baiana de Gregório de Matos, ele era um novo “Boca do Inferno”. Não são poucos os que sabem de cor seus epigramas, feitos de improviso, desembuchados (pois não vinham do coração), expelidos, cuspidos por entre os dentes, mas que adquiriam – quando pousados no lápis ou assentados no papel – uma graça de garça que, após o voo vertiginoso, com a flecha do bico apanha o peixe. Basta, como exemplo, a “jóia” sobre um pintor que era poeta e vice-versa: “quando ele pinta é um acinte / aos olhos que fazem greve, / mas, por pior que ele pinte, / pinta melhor do que escreve”. A quadra estralava como um tapa em uma face, e, na outra face, soava a ruidosa risada de Ildásio, como a do personagem – João Urso – de Breno Accioly.
Para dizer de Ildásio, seria necessário escrever livros e foram livros, na vida, o que ele fez e legou. De Somente um canto até Odes brasileiras, de A roda de fogo até O domador de mulheres, foram 42 livros de poesia, ficção, ensaio e o resto. Conheci-o em Sergipe – Aracaju – quando fizemos parte da comissão julgadora de um prêmio de poesia. Publicamos, no Rio, pela mesma editora, de Eduardo e Franco Portella – Tempo Brasileiro –, no mesmo ano de 1978. Ildásio era poeta, romancista, contista, tradutor, pintor, chargista, compositor (parceiro de Vinícius de Moraes), professor universitário, crítico literário e capoeirista do Campo da Pólvora. Certa vez, durante um show de Noite Ilustrada, em Campina Grande, resolveu provar a sua habilidade como capoeirista e começou a derrubar, uma por uma, todas as cadeiras desocupadas. Outra vez, no apartamento de Pedro Lyra – em “Copacanema” – durante uma discussão sobre pintura e poesia, retirou um quadro da parede e o defenestrou do 10º andar.
Quando, perplexo, Pedro indagou: “Se atingisse, na rua, uma criança?” Obteve a resposta inusual: “Sairia em manchete nos jornais: quadro ruim assassina criança”. Ildásio morou nos Estados Unidos, passou pela luta armada, escreveu regularmente nos jornais da Bahia, dizia-se filho de santo e coisas tais. Afinal, como o nome de um dos bares da sua terra, ele era uma espécie de “Ex-tudo”, mas, se fazia tudo com graça, nada fazia de graça, ou seja, sem seriedade.
Falava várias línguas e tinha uma verve que, faltando companhia, poderia conversar um dia inteiro consigo mesmo, diante de um espelho, ou com o papagaio. O seu apartamento e sua casa, em Salvador, viviam de portas abertas para os amigos, mas, para os inimigos, poderiam apontar, por uma das janelas, um cano curto de revólver, ou longo de espingarda. Viajou em derredor do mundo e (quem sabe?) por fora do planeta. Contudo, nas suas crises, em vez de alunissar, aterrissava sempre na Bahia. Conhecíamos as quatro fases, as quatro faces, as quatro frases de Ildásio. Ligava o telefone a qualquer hora da madrugada, com a costumeira frase: “Fala, macho!”
Ildásio Márquez Tavares deixou três filhos, duas filhas e, pelo menos, três ou 30 viúvas (ele também era do ramo). Amigo de Jorge Amado, de Eduardo Portella, de João Ubaldo Ribeiro e de quase todos os baianos – como Caetano e Gil, Bethânia e Gal – ele escolheu três amigos íntimos – e, por eles, também foi escolhido – pela coincidência do mês de janeiro e do signo de aquário: Fernando Mendes Viana (de Brasília) Pedro Lyra (do Ceará – radicado no Rio de Janeiro) e eu (de Pernambuco). Como Os três mosquiteiros – de Alexandre Dumas – éramos quatro, batizados por ele de “Os quatro cavaleiros do apocalixo”. Fernando Mendes Viana se foi.
Ficamos três “cavaleiros do apocalixo”. Ildásio se foi. Restamos dois “cavaleiros do apocalixo”. Se Kierkegaard nos fala de uma única escolha – “que eu possa ter sempre o riso do meu lado”
– eu poderia escolher: que eu possa ter sempre Ildásio do meu lado.
*Marcus Accioly é poeta
Para dizer de Ildásio, seria necessário escrever livros e foram livros, na vida, o que ele fez e legou. De Somente um canto até Odes brasileiras, de A roda de fogo até O domador de mulheres, foram 42 livros de poesia, ficção, ensaio e o resto. Conheci-o em Sergipe – Aracaju – quando fizemos parte da comissão julgadora de um prêmio de poesia. Publicamos, no Rio, pela mesma editora, de Eduardo e Franco Portella – Tempo Brasileiro –, no mesmo ano de 1978. Ildásio era poeta, romancista, contista, tradutor, pintor, chargista, compositor (parceiro de Vinícius de Moraes), professor universitário, crítico literário e capoeirista do Campo da Pólvora. Certa vez, durante um show de Noite Ilustrada, em Campina Grande, resolveu provar a sua habilidade como capoeirista e começou a derrubar, uma por uma, todas as cadeiras desocupadas. Outra vez, no apartamento de Pedro Lyra – em “Copacanema” – durante uma discussão sobre pintura e poesia, retirou um quadro da parede e o defenestrou do 10º andar.
Quando, perplexo, Pedro indagou: “Se atingisse, na rua, uma criança?” Obteve a resposta inusual: “Sairia em manchete nos jornais: quadro ruim assassina criança”. Ildásio morou nos Estados Unidos, passou pela luta armada, escreveu regularmente nos jornais da Bahia, dizia-se filho de santo e coisas tais. Afinal, como o nome de um dos bares da sua terra, ele era uma espécie de “Ex-tudo”, mas, se fazia tudo com graça, nada fazia de graça, ou seja, sem seriedade.
Falava várias línguas e tinha uma verve que, faltando companhia, poderia conversar um dia inteiro consigo mesmo, diante de um espelho, ou com o papagaio. O seu apartamento e sua casa, em Salvador, viviam de portas abertas para os amigos, mas, para os inimigos, poderiam apontar, por uma das janelas, um cano curto de revólver, ou longo de espingarda. Viajou em derredor do mundo e (quem sabe?) por fora do planeta. Contudo, nas suas crises, em vez de alunissar, aterrissava sempre na Bahia. Conhecíamos as quatro fases, as quatro faces, as quatro frases de Ildásio. Ligava o telefone a qualquer hora da madrugada, com a costumeira frase: “Fala, macho!”
Ildásio Márquez Tavares deixou três filhos, duas filhas e, pelo menos, três ou 30 viúvas (ele também era do ramo). Amigo de Jorge Amado, de Eduardo Portella, de João Ubaldo Ribeiro e de quase todos os baianos – como Caetano e Gil, Bethânia e Gal – ele escolheu três amigos íntimos – e, por eles, também foi escolhido – pela coincidência do mês de janeiro e do signo de aquário: Fernando Mendes Viana (de Brasília) Pedro Lyra (do Ceará – radicado no Rio de Janeiro) e eu (de Pernambuco). Como Os três mosquiteiros – de Alexandre Dumas – éramos quatro, batizados por ele de “Os quatro cavaleiros do apocalixo”. Fernando Mendes Viana se foi.
Ficamos três “cavaleiros do apocalixo”. Ildásio se foi. Restamos dois “cavaleiros do apocalixo”. Se Kierkegaard nos fala de uma única escolha – “que eu possa ter sempre o riso do meu lado”
– eu poderia escolher: que eu possa ter sempre Ildásio do meu lado.
*Marcus Accioly é poeta
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