quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Salvador, capital mundial

Ilustração de Gentil
PAULO ORMINDO DE AZEVEDO*
Com este título pomposo e clima de Milagre do Sal, os governos municipal [de Salvador] e estadual [da Bahia] apresentaram ao público, no último dia 28 de janeiro, um cesto de 22 projetos urbanos, a maioria já em andamento ou conhecidos e outros novos elaborados como os demais em surdina, por empresas e ONGs privadas. A apresentação chic era claramente dirigida à dobradinha empresários/políticos. O Zé Povinho ficou de fora, guardando os carros.
Uma cidade mundial pressupõe um grande centro financeiro, de inovação tecnológica, de cultura, design e moda. Talvez só São Paulo e Buenos Aires possam pretender este título na América do Sul.
Na saída todos se perguntavam onde terminava a fantasia tropical e começava o mundo real.
Não se trata, evidentemente, de um plano urbanístico, senão de uma cesta de projetos independentes oferecidos pelos empresários, o que reafirma a dependência e a incapacidade da prefeitura e estado de planejar.
Salvador foi apresentada como uma ilha sem ligação com a região metropolitana (RMS). De um modo geral todos os projetos procuram valorizar as áreas de maior potencial imobiliário, a Orla do Atlântico e a bela enseada do Canta Galo. Os projetos viários seguem o paradigma, já superado, da mobilidade sobre pneu, diante do veto da associação dos donos de ônibus ao VLT (veículo leve sobre trilhos).
Não se discute como conciliar o ultrapassado porto urbano com a abertura para a baía, nem o impacto da ponte de Itaparica sobre Salvador, ou a articulação do metrô com o sistema de transporte, o uso do solo, a habitação popular, o turismo e a cultura, molas do desenvolvimento da cidade.
A maioria dos projetos terá forte impacto ambiental e social, especialmente as avenidas Atlântica e Linha Viva e de urbanização do Canta Galo, este estribado em um instrumento, a Concessão Urbanística, que só reconhece o direito à propriedade do grande capital. A expropriação da pequena propriedade sem justa causa para entregar a grupos imobiliários é inconstitucional.
Ressalve-se, contudo, que é primeira vez que os dois governos expõem o que pretendem fazer. Sob pressão da sociedade civil e da mídia esboça-se uma mudança cautelosa de atitude.
O prefeito reconhece que Salvador precisa de um plano urbanístico e que só pode sair do buraco fazendo alianças com o estado e a União. Reconhece ainda que o atual PDDU (Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano) não atende à dinâmica da cidade e que é preciso modificá-lo.
O convite do prefeito à discussão deixa claro que ele sabe que já não se pode governar sem ouvir os setores organizados da sociedade, que têm nos Ministérios Públicos Estadual e Federal fortes aliados.
Coincidentemente, essas são todas teses defendidas por movimentos da sociedade civil como “A Cidade também é nossa”, que inclusive moveu uma Ação Civil Pública contra o famigerado PDDU. Tal movimento vem se ampliando com a adesão de outros movimentos, como “Vozes de Salvador”, associações de bairros e ONGs e apoio do Ministério Publico.
O prefeito e o governador só não admitiram o principal, medidas para desprivatizar o sistema de planejamento, que libertaria o governo da dependência técnico-financeira do setor imobiliário e do monopólio do “consórcio” das grandes empreiteiras. Sem isso, que garantias tem a sociedade da aplicação de recursos públicos com critérios sociais, técnicos e lisos?
Não queremos ver se repetirem os escândalos do metrô, do PDDU e do lixo. Queremos dialogar sim, mas dentro de um sistema de planejamento continuado, técnico, participativo e retroalimentado, e não sobre projetos contaminados pelo vírus cavalo de troia, que mata e apaga a memória do setor público.
É possível criar uma instância de planejamento público não comprometida, como fizeram outros estados e cidades, restaurando o estado, recuperando órgãos como o Derba e a Conder, mobilizando a UFBA, a UNEB e associações profissionais. Não falta know how, nem agências para financiar: BNDES, Finep, CNPq, Fapesb.
Planejar não é uma atividade simplesmente técnica, é essencialmente política, e o estado não pode se omitir ou receber projetos de regalo. O que falta é decisão política, cuja demora compromete governos que se pretendem modernos, democráticos e transparentes.
*Paulo Ormindo de Azevedo – Arquiteto, diretor do Instituto dos Arquitetos do Brasil – Departamento Bahia (IAB-BA) e professor titular da Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Artigo publicado originalmente no jornal A Tarde, 07/02/2010. p.2 Opinião

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