quarta-feira, 10 de agosto de 2022

“Nos tornamos naquilo que nos apegamos”.


Osvaldo Campos Magalhães*
Na língua Tupi-Guarani, existem dois significados para a palavra UBIRAJARA: “Senhor da Lança” e  “Grande Guerreiro”.
Encontrei pela primeira vez o publicitário Ubirajara da Silva Monteiro em 1976, quando fazia estágio numa grande construtora de Salvador e tínhamos frequentes reuniões com a empresa de propaganda contratada, definindo estratégias de lançamento de novos empreendimentos imobiliários.
Nesta época, como prefeito de Salvador, estava o jovem administrador Jorge Hage Sobrinho, e a empresa de Ubirajara, a Denilson Propaganda, era responsável pela publicidade institucional da Prefeitura.  
O ENCONTRO
Dois anos depois, na primeira Praia do Morro de São Paulo, uma família de velejadores, em cinco hobbie kats, escolhem como local de atracação as areias em frente à casa da minha família.
Por coincidência, meu irmão Marcelo, tinha adquirido um hobbie cat, que veio desmontado de Salvador, a bordo da escuna Novo Éolo,  do primo Mauricio Stern.
Os velejadores nos ajudaram a montar o barco e uma garota, Cláudia, da mesma idade de Marcelo, se prontificou a ajudar, nos dando as primeiras noções de como velejar um barco tão ágil e rápido.
Cláudia, era a filha caçula de Ubirajara.
Carioca, nascida no bairro de Santa Tereza, era bem diferente de todas as garotas que tinha conhecido. Alegre, extrovertida e extremamente espontânea, logo cativou minha atenção.
Nunca tinha velejado num barco tão ágil e rápido. O hobbie cat é um pequeno catamarã, muito leve e veloz, e, com qualquer descuido, o barco vira e o mastro fica todo mergulhado, perpendicularmente à lona onde os velejadores se apoiam. Uma das melhores lições que recebemos da jovem velejadora foi justamente a técnica de desvirar o catamarã, colocando o hobbie cat em condição de navegação.
Após 20 dias no Morro de São Paulo, a família Esteves e amigos retornaram a Salvador, deixando saudades, especialmente da jovem velejadora.
A MUDANÇA NA PREFEITURA
Sendo obrigado pelo General Golberry do Couto e Silva a exonerar o Prefeito Jorge Hage, o governador Roberto Santos encaminha alguns nomes à Casa Civil da Presidência da República, visando obter autorização para a nomeação do novo prefeito de Salvador. Vivíamos em plena ditadura militar e tanto o governador da Bahia como o prefeito de Salvador eram escolhidos pelo Presidente da República, na época, o general Ernesto Geisel.
O candidato preferido do governador era o Secretário da Educação, Carlos Santana mas, o escolhido foi o Deputado Federal Fernando Wilson.

Assumindo o cargo de Prefeito de Salvador, o Deputado Fernando Wilson reformulou todo o secretariado, mas, manteve a Denison Propaganda como empresa responsável  pela publicidade institucional da Prefeitura de Salvador.
UBIRAJARA
Nascido no Rio de Janeiro, começou a trabalhar muito cedo, na empresa de publicidade americana MacCann Eriksson.
Criada no ano de 1930 em plena Madison Avenue, Nova York, Estados Unidos, a McCann-Erickson nasceu como fruto da fusão entre duas pequenas agências: a Erickson Company, fundada em 1902, e a HK McAnn Company, de 19121. Chegou ao Brasil em 1935, em pleno Carnaval, no Rio de Janeiro, sob a condição de ser agência que cuidaria da conta da Esso, braço latino-americano do conglomerado Standard Oil, que tinha Nelson Rockfeller como um de seus sócios-proprietários.
Sob a direção de Armando de Moraes Sarmento, a filial brasileira chegou a ser dona de um invejável carteira de clientes, na qual figuravam, para além da Esso, nomes como Coca-Cola, Colgate-Palmolive (antiga American Home), Anderson Clayton, Goodyear, Nestlé, entre outros (RAMOS, 1985). A McCann-Erickson também marcou o desenvolvimento da propaganda no Brasil a partir da introdução de novos instrumentos de análise de audiência, pesquisas de opinião, programas e telejornais patrocinados para o rádio, incluindo o popular “Repórter Esso”, além de no uso de novos veículos de mídia, como o outdoor.
Ubirajara, já com grande conhecimento e experiência, ingressa na Denison Propaganda, fundada em 1957, no Rio, como house-agency da Ducal.
Seus fundadores, foram os  publicitários Jurandir Ulisses Arce e Sepp Baendereck, que estavam na Ás Propaganda, pequena agência fundada no início dos anos 50.
Como agência do Grupo Ducal, cujas empresas eram sempre batizadas com nomes iniciados por "D", a nova agência foi batizada em homenagem ao diretor da J.Walter Thompson no Rio Robert Dennison, que nunca teve nada a ter com ela. 
Chegou a ser uma das mais importantes agencias brasileiras. Teve depois como sócios Oriovaldo Vargas, Sérgio Ferreira, Hector Brenner e Celso Japiassú. Teve escritórios no Rio, São Paulo, Brasilia, Pernambuco e Bahia.
Ubirajara foi o diretor da Denison Propaganda no Nordeste por mais de 15 anos, inicialmente a partir de Recife e depois em Salvador. Nessa época, eram poucas as Agências de Publicidade locais e a Denison detinha uma grande carteira de clientes, entre eles a Prefeitura de Salvador.
MORRO DE SÃO PAULO
Minha família começou a frequentar a ilha de Tinharé, no município de Cairu, na primeira metade da década de cinquenta. Um grupo de moradores da cidade de Cruz das Almas foram os primeiros a construírem casas de veraneio na primeira praia. A irmã de meu pai, Lúcia, era casada com um alemão, Hebert Stern, que trabalhava na fábrica de charutos Suerdick e morava em Cruz das Almas. O tio Estrela, como o chamávamos, era responsável pela compra da matéria prima das fábricas, a folha de fumo, e meu avô Joaquim Santana, possuía um grande armazém de fumo na cidade de Castro Alves, onde nasci em 1955.
Durante nossa infância e adolescência, íamos veranear no Morro, nos meses de janeiro e fevereiro. Nessa época, o turismo de massa ainda não tinha chegado e a ilha, com suas extensas praias repletas de corais, ainda era um paraíso deslumbrante com uma rica diversidade de vida marinha. Nas noites de lua nova, as praias eram invadidas pelas “pata-chocas” (guaiamuns), e durante o dia, com a maré vazia, os pescadores capturavam moluscos para o sustento das famílias.
O REENCONTRO
Voltando das férias de dois meses no Morro de São Paulo, retomei o contato com a jovem velejadora e logo começamos a namorar. Ainda não sabia da relação empresarial de Ubirajara com a Prefeitura, situação que perdurou por vários meses, até que, num belo dia de sol, o prefeito foi à ilha de Maré inaugurar obras de saneamento e iluminação pública. Acompanhei meu pai  no evento. Fomos numa escuna alugada pela prefeitura.  Ubirajara foi um dos precursores da transformação dos grandes Saveiros em escuna e se dirigiu à ilha de Mare com toda família e alguns colaboradores da Denilson na sua escuna, cujo nome era Porreta.  Era grande, toda branca, com dois mastros e bastante veloz.
Nessa época, estaleiros em Valença e Cajaiba eram responsáveis pela construção da maioria das escunas na Bahia. Empresas de turismo como a LR possuíam grandes frotas de barcos que eram alugadas a turistas de outros estados e países.
Ao me encontrar com Cláudia na ilha de Maré, o que era secreto passou a ser do conhecimento das duas famílias, que apoiaram e incentivaram. Apesar de muito jovem, Cláudia era muito madura e confiante.  Passamos a frequentar as casas das duas famílias e ganhamos autorização para viajarmos juntos nos grandes feriados. Além do Morro de São Paulo, viajávamos à Fazenda da família em Castro Alves e ao vilarejo da Mombaça, local onde nasceu minha mãe.
SÃO FRANCISCO DA MOMBAÇA 
Localidade fundada pela família do meu bisavô João Coni, italiano nascido em Rofrano, que veio ao Brasil ainda adolescente com o tio Nicolau disposto a iniciar uma nova vida.
O vilarejo, hoje com cerca de 800 habitantes e pertencente ao município de Conceição do Almeida, conserva seu casario do começo do século passado (parte dele ainda pertencente aos Coni), sua capela, o campinho de futebol e nome da família espalhado nas placas de rua e praça. As casas em estilo colonial grudadas na frente se abrem para os fundos em amplos horizontes verdes, com páteos e jardins. Na frente um enorme quadrado verde que faz lembrar Trancoso pré-turismo predatório. Ali não tem praia por isto não tem pousadas. Mas tem meninos jogando futebol no fim de tarde, muitos canários da terra, sabiás e bem-te-vis.
Adorávamos viajar até a Mombaça, especialmente na Semana Santa e no São João, onde ocorriam festas populares e éramos recebidos pela saudosa avó Belita.
Após seis meses de namoro, e com a minha formatura em julho de 1979, os laços familiares se estreitaram e, com uma oferta de trabalho concretizada na Natron Engenharia e Projetos, já vislumbrava a possibilidade de ter meu próprio apartamento e maior independência da família. Coincidentemente, dois meses depois da minha formatura, Ubirajara me leva a conhecer um apartamento que havia adquirido da Construtora Lebram (um dos clientes da Denison), na avenida Cardeal da Silva, próximo ao Condomínio Pedra da Marca, um dos mais luxuosos e privativos de Salvador.

Dizem que o amor energiza e nos enche de vitalidade e felicidade. Foram meses bastantes especiais, que jamais iríamos esquecer.
A PARTIDA
Quarenta e dois anos depois, me encontro agora em São Pedro da Serra, com Cláudia e sua mãe Maria Luiza. Ubirajara faleceu em 2018, vítima de câncer. Depois de aposentado decidira se mudar do Rio de Janeiro para Nova Friburgo, no distrito de São Pedro da Serra, onde construiu uma bela e aconchegante pousada, a Galo da Serra.
Uma de suas grandes paixões era a literatura e a figura de Dom Quixote era uma presença constante. Colecionava diversas esculturas, em metal e madeira e se identificava muito com o personagem.

“Que a narrativa do engenhoso fidalgo de La Mancha é cativante, todos sabem. O que poucos conhecem, no entanto, são os recursos que a obra detém no sentido de realimentar em seus leitores, em diferentes épocas da história da humanidade, uma verdadeira “paixão” pela história e pelas personagens que empreendem uma longa andança pela Espanha, no limiar dos séculos XVI e XVII. Um cavaleiro e seu escudeiro que, em busca de aventuras, vão travando uma longa amizade pautada pela lealdade entre o louco ou o ingênuo sonhador e seu fiel, desastrado e também perspicaz escudeiro. Amizade esta, considerada como uma das mais bem representadas em toda a literatura.”

Ubirajara sempre foi fascinado pelos saveiros  da Bahia, as escunas e nosso litoral. Para atender o desejo da esposa, Maria Luísa, decidiu, depois de aposentado, viver na serra fluminense. Em São Pedro da Serra, Ubirajara se tornou apicultor, criador de patos (para a alegria dos netos), cafeicultor e fundou a ACISPS, Associação Comercial e Industrial de São Pedro da Serra. Lia diariamente “O Globo” e a “Folha de São Paulo”, que um amigo motorista de ônibus trazia para ele de Nova Friburgo. Gostava de um bom vinho e das deliciosas tilápias produzidas na região serrana. Viveu a vida intensamente, deixando saudades e muitos amigos.

*Osvaldo Campos Magalhães, casado com Cláudia, é pai de Pedro e Mariana, e avô de Letícia e Luca. Terceiro filho de Sônia e Fernando Wilson Magalhães 

** “Nos tornamos naquilo que nos apegamos” - Miguel de Cervantes

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