domingo, 21 de fevereiro de 2021

Quem é o poeta baiano José Carlos Capinan, que aparece na capa do álbum Tropicalia?'

CLAUDIO LEAL*' Nos bastidores do Festival da Record de 1967, perto de ser anunciada a vitória de “Ponteio”, sua parceria com Edu Lobo, o poeta José Carlos Capinan entregou ao tropicalista Gilberto Gil a letra de “Soy Loco Por Ti, América”, tributo cifrado ao guerrilheiro Che Guevara. Um dos maiores letristas da música popular brasileira, Capinan não reconheceu fronteiras na construção de parcerias. De João Bosco ("Papel Machê") a Geraldo Azevedo ("Moça Bonita"), de Jards Macalé ("Gotham City") a Caetano Veloso (“Clarice”), de Paulinho da Viola (“Coração Imprudente”) a Roberto Mendes ("Yáyá Massemba"), de Sueli Costa (“Vuelve Mi luz”) a Moraes Moreira (“Cidadão”), sua poética muda livremente de território. Integrante do grupo da tropicália, Capinan chega aos 80 anos sem fixar outra fronteira, aquela instituída entre o ofício de poeta e o de letrista. “As coisas que aconteceram na linguagem poética alteraram muito essa relação. Não vejo esses dois textos como duas coisas diferentes. Tem mais ou menos um conceito ou preconceito de que a letra é alguma coisa inferior à poesia. Não me parece correto”, diz Capinan, que vive em Salvador. Nascido num arraial em Entre Rios, na Bahia, em 19 de fevereiro de 1941, o poeta se batizou na vida artística na capital baiana, engajado no Centro Popular de Cultura, o CPC, enquanto cursava direito e teatro. Não concluiu nem um, nem outro. Ele se diplomaria em medicina, nos anos 1970. Ainda na Bahia, houve uma prévia de seus vínculos com o movimento tropicalista. “O primeiro autor que me atraiu foi Tom Zé, quando a gente trabalhava no CPC, no ‘Bumba Meu Boi’. Gil aparecia eventualmente para ver alguns ensaios, assim como Caetano, que chegou a fazer um samba pra nossa escola de samba. Eram os caras mais soltos em relação aos compromissos acadêmicos”, lembra. Fugitivo do golpe militar de 1964, Capinan pegou a estrada para São Paulo, mas decidiu viver no Rio de Janeiro. Em “Inquisitorial”, de 1966, livro de estreia, seus poemas reagiam, sem estreiteza, à opressão. O poeta identifica dois eixos na obra. “Há textos com mais densidade literária e há poemas-piada, sem tomar a bênção ao que podia se chamar literatura. ‘Inquisitorial’ é trabalhado, já nos outros poemas há um relaxamento da linguagem, que é uma coisa da poesia moderna.” Naquele 1966, como frequentador dos encontros de músicos no Teatro Jovem, no Rio, ele se sentou certa feita ao lado de Paulinho da Viola. “Eu me chamo Capinan, vim da Bahia e a gente podia ser parceiro”, ele propôs, num intervalo. Pouco depois nasceria “Canção de Maria” —e a amizade. “No tempo em que Capinan viveu no Rio, a gente estava sempre junto. Capinan é muito inteligente, culto, com uma visão critica das coisas. Um dia ele falou ‘você sabe por que as escolas de sambas estão vivas? Porque elas nunca pararam no tempo’. A gente estava conversando sobre as mudanças na ditadura”, recorda Paulinho da Viola, seu parceiro em “Prisma Luminoso”. “Ponteio”, com Edu Lobo, seria uma virada no reconhecimento da crítica. “A vitória no Festival de 1967 deu visibilidade e alterou muito a minha presença na área musical”, avalia Capinan. O pulo para o tropicalismo o trouxe mais para perto das experimentações de linguagem. “O núcleo tropicalista principal, que eu visualizo em Caetano, Gil e Tom Zé, estava localizado em São Paulo. Quando o disco estava para ser lançado, Gil me convidou para uma reunião. Foi um convite do Gil, que eu conhecia de Salvador. Fizemos uma canção, ‘Miserere Nobis’.” Gilberto Gil reconhece as afinidades com o amigo. “Capinan vem de uma região do agreste baiano com uma formação muito severina, como eu lá no sertão. Eu já muito mais ligado a Salvador, a essa cultura litorânea, e ele só vem a conviver com esse mundo quando vem mesmo fazer a escola de direito. Aí vai incorporando ao imaginário poético essa cultura urbana e litorânea, com a coisa africana mais nítida”, observa Gil, um dos autores de “Viramundo”. “Ambos temos essa coisa sertaneja muito forte e, na segunda fase da adolescência, essa coisa urbana.” Os livros de poemas de Capinan seguem fora de catálogo. “Inquisitorial” e “Confissões de Narciso”, da Civilização Brasileira, não foram mais editados. Em 2004, a editora baiana Caramurê lançou “Vinte Canções e um Poema Quase Desesperado”. Ele pode ser lido na antologia “26 Poetas Hoje”, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda em 1976 e relançada pela Companhia das Letras. “Apesar de ter mais de 200 músicas gravadas, não consigo viver de direitos autorais. ‘Ponteio’ foi uma das que menos recebi direitos autorais. Não consegui receber direitos de ‘Ponteio’ no exterior”, conta Capinan. Em Salvador, ele é diretor do Muncab, o Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira. Idealizado pelo ex-ministro Francisco Weffort, em 2002, com o acervo inicial organizado por Emanoel Araújo, o museu seria federalizado pelo antigo Ministério da Cultura, mas esse processo nunca se completou. Persiste a crise financeira. Capinan comemora seus 80 anos numa live-show de lançamento do volume dos "Cadernos de Música" sobre sua obra, no canal do YouTube do Muncab. Seu itinerário de letrista merece destaque na coleção editada por Ana Paula Simonaci, Sergio Cohn, Leonardo Lichote, Paulo Almeida e Janaina Marquesini. Além dela, será lançada a série de cinco capítulos dirigida por Jamile Coelho sobre suas canções mais célebres. Jards Macalé, Roberto Mendes e Gereba participam da live. “Movimento dos Barcos”, sua canção com Macalé, condensa desejos geracionais preservados por Capinan. “Não quero ficar dando adeus/ Às coisas passando, eu quero/ É passar com elas, eu quero/ E não deixar nada mais do que as cinzas de um cigarro/ E a marca de um abraço no seu corpo.” “Continuo falando daquilo que é e foi sempre o caráter do meu trabalho, o humanismo radical. Seja em ‘Papel Machê’, seja em ‘Soy Loco Por Ti, América’. Elas têm o homem como o centro do mundo. O homem como radical. Em qualquer canção minha está presente essa ideia. Seja a mais guerrilheira das canções, seja a mais romântica. Eu trabalho sempre abrindo para o lado humano”, diz o poeta. * Jornalista da Folha de São Paulo

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