Os bairros tradicionais de Salvador eram garrafões de uma só entrada, o que facilitava a coesão social. Em volta era o mato ou o mar. As festas populares são indicadores do sentimento de pertencimento comunitário em um bairro. Recordo-me do carnaval festejado nos bairros de Salvador, antes dele ser encampado pelo poder público e pelo mercado, fatiado e segregado por cordas e camarotes. O carnaval dos bairros acabou. Para minha surpresa, o São João, pouco comercializado, continua resistindo. Sai na noite de São João rondando a cidade para ver onde ele ainda é festejado. Nos bairros de classe média alta ele já não existe. Mas na Av. Beira Mar em Itapagipe, no Garcia, Tororó, Liberdade, Piripiri e outros bairros populares havia fogueiras, barracas vendendo comida e licores, vizinhos sentados nas calçadas jogando conversa fora.
Por que esta diferença? Não sou sociólogo, mas é sabido que nas classes altas o individualismo é mais forte e as carências menores. Na periferia, a comunidade se une para reivindicar ou amenizar a falta de saneamento, pavimentação e creches. Em suma, há um sentimento tribal de solidariedade. Há algumas décadas atrás, o rapaz que quisesse namorar uma moça de Itapagipe, tinha que ter muito amor e coragem para suportar as provocações da tribo local. Faço parte de alguns movimentos de defesa de Salvador e sabemos que são poucas as associações de bairros de classe média, ao contrário da periferia. Quando elas existem, como a AmaBarra, é porque seus moradores se sentem molestados por políticas urbanas arrevesadas.
Há um fator urbanístico nessa estória. O antropólogo Roberto Damatta analisou a relação da casa com a rua em um livro esclarecedor. Nos bairros formados por casas as relações de vizinhança são muito mais fortes que em condomínios verticais. Nestes, os poucos condôminos que vão às assembleias é para reclamar do valor do condomínio ou pedir providência contra o cachorro e o som alto do vizinho. Piscinas, academias e saunas são pouco usadas pelos moradores, mas as imobiliárias continuam incluindo esses fetiches em seus lançamentos para vender apartamentos aos incautos.
Meu colega de profissão e jornal, Lourenço Mueller, há um ano teve a ideia de promover um sarau lítero-pictórico e etílico para fazer com que os moradores dos espigões de sua rua, na Graça, se conhecessem. Foi um sucesso, supostos mortos apareceram, separados descobriram que eram vizinhos etc. Espero que pelo menos agora eles se cumprimentem no elevador. Mas para que serve esta socialidade de vizinhança? Para termos uma trégua diária no stress e na competição do trabalho e da escola, para podermos fruir a urbanidade jogando conversa fora e vivendo um pouco mais.
* Paulo Ormindo Azevedo, é Arquiteto e Professor Titular da Ufba
SSA, A Tarde de 02/07/17
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