sábado, 22 de abril de 2017

Salvador, sua linda


Malu Fontes*
Salvador, meu solo adotado, minha cápsula no mundo, me perdoe por todos os anos lhe dar o mesmo presente: um pedido. 
E desde quando pedido é presente? 
Ora, quando é um pedido bom, é um presente, sim. 
Quando me perguntam: de que CIDADE você é? Sempre, automaticamente, penso, num átimo de tempo: minto ou minto? 
Não há outra opção. A primeira mentira, aos ouvidos de quem pergunta, mas que é mais que uma verdade para mim: "de cidade nenhuma, de lugar nenhum". 
Sim, não sou de cidade nenhuma, embora todos os lugares estejam, burocraticamente, ligados a uma cidade, à sede de um município. 
Eu nasci nos confins da Bahia e nunca pertenci à cidade burocrática à qual o pedaço de fim de mundo de onde venho se liga nos documentos oficiais. 
A segunda mentira: "sou de Salvador". É mentira, mas é a minha verdade. Eu sou cria e criatura de Salvador. Salvador me fez, me bateu, me acolheu, me fez adulta, lambeu minhas feridas, me coloriu, me lustrou e ilustrou, me deu verbo e alguma verba, me deu amores, dores, desamores e muito humor para fazer com tudo isso um jeito meu de reagir ao mundo. 
Ela é a cidade, nesse caso de VERDADE, dos meus filhos; me ofereceu todos os saberes atrás dos quais eu fui, me apresentou os melhores amigos que fiz após a infância e que são hoje as minhas âncoras; ancorou, depois de mim, uma multidão de gente da minha família. 
E é por tudo isso que, embora adore uma dúzia de cidades deslumbrantes por onde passei no Brasil e fora dele, meu útero urbano é Salvador, com todos os seus defeitos, qualidades, belezas e feiuras. 
De perto ou de longe, eu a amo. E por amá-la, há um bom tempo, todos os anos quando me perguntam o que eu diria no seu aniversário, o que eu lhe daria de presente, eu tiro das minhas entranhas afetivas o meu pedido, já gasto, mas com validade enquanto eu viver, pois ainda não o vi atendido desde que moro aqui, desde 1985. 
Meu pedido nasceu meio metido a besta, ou talvez tenha nascido com um certo mofo provinciano, ou paroquial, sei lá. Nasceu na primeira vez que vi Lisboa. Foi olhar para Lisboa, pisar naquelas pedras, olhar aquelas ruas, as paredes limpas daqueles casarios e um mantra se instalar como um grilo falante em meu imaginário. "Essa cidade é Salvador tomada banho". 
E esse é o meu presente. Um pedido, um apelo. Às autoridades todas, de hoje e do fruto, e a todo mundo que vive em Salvador ou a experimenta. 
Por favor, a façamos limpa, cuidada, como se tivesse parentes atentos; não a tratemos como a uma anciã esquecida de quem não se cuida dos cheiros, dos dentes, de quem não se troca as roupas de baixo, a quem não perfumamos nem tocamos com cuidado, a quem não vestimos com a melhor roupa e servimos a comida melhor que podemos. 
É isso que eu queria dar a Salvador: um banho de água de cheiros, afagos nos cabelos, roupas limpas, unhas cortadas; para o sol e a brisa marinha tão escandalosamente intensos que a envolvem evidenciassem os traços da beleza e da força dessa quatrocentona já quase quinhentando-se. Eu sou de Salvador. Essa é a mentira mais verdadeira sobre mim.

Malu"
*Malu Fontes é jornalista e professora. Doutora em Comunicação e Cultura pela UFBa

Nenhum comentário:

Postar um comentário