Diferentemente das escolas
de samba do Carnaval do Rio, que se consolidaram no modelo de um desfile,
sustentado na beleza do espetáculo, permanecendo atrativo mesmo quando durante
anos nenhum samba se tornou imortal ou sequer tocou nas rádios do Brasil, o
Carnaval da Bahia, que tem o modelo de participação de rua, tem sua
atratividade relacionada ao sucesso dos seus artistas e das músicas. Isso é
muito claro historicamente nas últimas cinco décadas.
Apesar de o trio elétrico ter
sido inventado nos anos 1950, foi o sucesso da música Atrás do Trio Elétrico, de Caetano Veloso, em 1969, que despertou o
interesse dos brasileiros pelo Carnaval de rua de Salvador, assim como
revalorizou o Carnaval para os próprios baianos, levando-o a um patamar
estimado de um milhão de pessoas participando da festa nos anos 1970.
Esse padrão de participação
só começaria a se ampliar a partir dos anos 1990, quando a axé music se tornou
um ritmo local de sucesso, que começou a interessar ao Brasil.
É a primeira
fase de Luís Caldas, com o Fricote (1985),
e do bloco afro Olodum, com o sucesso de Faraó
(1987). Mas somente em 1992, quando pela primeira vez o samba-reggae se torna a
musica mais tocada do Brasil, com o Canto
da Cidade, e o sucesso de Daniela Mercury, com o CD mais vendido do ano no
país, a axé music começa a se tornar uma usina de sucessos em todo Brasil. Em
público de shows e vendagens de discos, a axé music será o maior sucesso da
música brasileira dos anos 1990 e o Carnaval da Bahia dobra de tamanho: passa a
ter uma participação estimada de dois milhões de pessoas, padrão que se mantém
até hoje.
O impacto de Daniela Mercury
não se resumiria ao sucesso da sua música e performance admirada nos palcos.
Típica empreendedora, a artista abriria sua própria empresa, que registrou como
Canto da Cidade, para administrar a sua carreira com total independência. Em
seguida, abriu sua editora musical, a Páginas do Mar, para controlar o uso de
suas obras, assim como assumiu a gestão do Bloco Crocodilo para garantir sua
autonomia artística no Carnaval.
Esse modelo de
artista-empresário-empreendedor cultural, que usa os rendimentos do sucesso
para investir na própria carreira e no mercado da música, se tornou
generalizado na axé music.
No Carnaval, esse impacto seria gigantesco: dezenas
de artistas de sucesso começaram a criar suas produtoras e editoras, além de se
tornarem sócios ou proprietários dos blocos, enquanto os empresários de música
que não eram artistas começaram a procurar e lançar novas bandas e artistas
como seu produto.
Mercado
autônomo
Esse empreendedorismo
cultural de sucesso fez com que a Bahia se tornasse a terceira cidade do país
em quantidade de produtoras da área musical, editoras de música e estúdios de
gravação, atrás apenas de São Paulo e Rio de Janeiro, que historicamente
concentram a indústria cultural e os meios de comunicação mais importantes do
Brasil. Com isso, Salvador reverteu a lógica de exportação de artistas para o
sul maravilha – praticada por todo Brasil- para se tornar um mercado próprio,
autônomo, poderoso e de repercussão nacional.
Foi essa geração que criou a
axé music e desenvolveu ao longo de mais de 30 anos um modelo flexível de
negócios e criativo de gestão, que tornou os blocos de trio a maior força de
atração de público do Carnaval de Salvador. Esses blocos se formaram com um
caráter associativo, com turma de amigos de bairro ou de escolas da cidade e,
com o tempo e o espírito empreendedor dos seus administradores, e mais tarde
dos artistas que os assumiram, essas organizações se transformaram em empresas,
gerando emprego e renda para milhares de pessoas.
Para desenvolver o negócio,
construíram um marketing poderoso a partir dos artistas e do sucesso das
músicas, profissionalizaram suas equipes e estruturas, conseguiram expandir as
atividades por todo o país, através dos carnavais fora de época, viabilizando
seus eventos e produtos com a venda ao consumidor – abadás, ingressos para
shows e festas – e o patrocínio de marcas cada vez mais interessadas em
associar o seu marketing à alegria e celebração que caracterizam esses eventos.
É essa riqueza concreta e
processo de desenvolvimento econômico através da cultura que Salvador desdenha,
quando as vozes de formadores de opinião, autoridades públicas, governantes,
acadêmicos defensores da pureza cultural e nostálgicos de um Carnaval
espontâneo que nunca existiu, se erguem num consenso em alto e bom som para
atacar a axé music, demonizando as cordas dos blocos e, na
verdade, condenando todo o lado comercial do Carnaval.
Surpreendente é que os
nossos governos municipal e estadual, em que pesem as suas diferenças
ideológicas, se expressam de modo parecido nas suas propagandas para o Carnaval
de 2017, com a mensagem de que derrubar as cordas é a grande contribuição deles
para o Carnaval.
A verdadeira contribuição é
quando os governos – como tem sido especialmente feito nos últimos quatro anos
pela prefeitura de Salvador – se empenham em contribuir para ampliar os dias de
festa, em criar novos eventos para incrementar a programação, melhorar a
segurança, aprimorar cada vez mais as condições de mobilidade urbana, e difundir
largamente pelo Brasil a grandiosidade do nosso carnaval.
Equívoco
estratégico
Mas
se para fazer tudo isso o governo precisa competir com a iniciativa privada,
blocos, camarotes, artistas e empresários, que criaram esse maercado, alguma
coisa está errada.
Todo
esse equívoco estratégico começou há muito tempo e tem se agravado nos últimos
anos. Os três últimos prefeitos, Antônio Imbassahy, João Henrique e agora ACM
Neto, o que equivale a um período de quase 20 anos, passaram a seguir um
raciocínio aparentemente inteligentíssimo: como a prefeitura de Salvador gasta
anualmente R$ 50 milhões com o Carnaval, e como os empresários mostraram
capacidade para captar milhões em patrocínio, a prefeitura, que detém o direito
de publicidade de rua, teria todas as armas para atrair patrocinadores para a
cidade. Mas a que custo?
Que
cidade no mundo teria a visão de investir R$ 50 milhões para fazer circular na
sua economia um total de R$ 1,5 bilhão é um mau negócio?
Ao
conquistar R$35 milhões em patrocínio, a prefeitura retirou esse mesmo valor do
que estaria disponível no mercado para financiar os blocos e camarotes, Com isso,
o governo municipal amplia e melhora a sua performance no Carnaval enquanto os
blocos e camarotes, com a redução drástica do patrocínio disponível, começam a
entrar em crise a ponto de muitos deles estarem pouco a pouco cancelando suas
apresentações no Carnaval, ameaçando fazer desaparecer, num futuro
próximo, a maior parte dos 250 mil empregos diretos e indiretos gerados pela
festa.
Essa
visão que condena o sucesso econômico dos empreendedores do Carnaval ameaça
destruir uma das mais sólidas cadeias de economia criativa do Brasil e do mundo
– o mercado da música e o Carnaval de Salvador – contribuindo para o
enfraquecimento de empresas, produtoras, editoras de música, estúdios,
equipamentos, trios elétricos, empresas de sonorização, de montagem de palcos,
e artistas e profissionais da área, como cantores, compositores, músicos,
artistas plásticos, cenógrafos, figurinistas, maquiadores, técnicos de som, e técnicos
de palco, produtores executivos, produtores musicais e todos os produtos e serviços
relacionados à musica.
De
resto, podem acabar com os lucros dos setores culturais que lucram com a festa:
os hotéis, as companhias aéreas, transporte, hospedagem, vendedores ambulantes,
aluguéis de temporada, negócios na área de alimentação e bebidas, entre outros.
Se
a crise da axé music se tornar o fim desse empreendedorismo cultural, ou da
cadeia produtiva da música que inclui o Carnaval, poderemos ter no futuro um
Carnaval espontâneo – o que de fato significa isso? – com a queda do turismo, a
queda dos negócios, a queda do emprego e renda, o fechamento das produtoras de
música, o exílio dos artistas para morar em outras cidades menos hostis à sua
atividade.
Estamos
todos querendo nos tornar espontâneos, gratuitos e mais pobres? E assumir, nós
mesmos, o papel daquele que matou a galinha dos ovos de ouro e ainda ficou
surpreso porque não teria mais ovos nem renovação da riqueza? E ainda queremos
ser considerados heróis da luta pela pureza das nossas manifestações culturais?
*Marcelo Dantas, Doutor em Sociologia pela Universidade de Paris, Jornalista
e pesquisador em Economia da Cultura - Mestre em Administaração - NPGA/UFBA
** Artigo originalmente publicado no jornal A Tarde, 27/02/2017 - Caderno 2 , pg.4