Dona de uma beleza natural e arquitetônica exuberantes, a Cidade do Salvador sinalizava, na primeira metade do século passado, o acúmulo de problemas urbanos gerados por um crescimento sem planejamento.
Na chamada “cidade presépio” das décadas de 30 e 40 prevaleciam deficiências como iluminação pública ruim, ruas estreitas, falta de saneamento e carência de transporte coletivo, entre outras
.A solução para esses problemas começaria a ser pensada no início da década de 40 por uma equipe multidisciplinar, composta por engenheiros, arquitetos, historiadores, advogados, sociólogos, antropólogos e médicos. Tendo à frente o baiano Mário Leal Ferreira, o Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador – Epucs, foi responsável pela elaboração do plano que mudou a cara da capital baiana e configurou a cidade como pode ser vista hoje.
O Epucs tornou-se um marco no planejamento urbano do país. Haviam cidades planejadas na sua gênesis. Mas, pela primeira vez, um escritório de urbanismo estava planejando e projetando a evolução e o desenvolvimento de uma cidade brasileira.
O objetivo, como observa o livro "Epucs – uma experiência de planejamento urbano", era criar e consolidar uma consciência urbanística, “sem a qual não seria possível uma expansão racional e metódica da capital”.
Idealizador do Epucs, e seu primeiro comandante, Mário Leal Ferreira era um baiano adepto da engenharia pluridisciplinar.
Nascido em janeiro de 1895 e formado em engenheiro geógrafo pela Escola Politécnica da Bahia, em 1914, iniciou sua vida profissional no Rio Grande do Sul, mudando-se, em seguida, para o Rio de Janeiro, onde foi, por muitos anos, professor da Escola Nacional de Engenharia, na disciplina “Higiene, Saneamento e Urbanismo”. Foi ainda professor de “Higiene da Habitação”, na Escola Nacional de Belas Artes.
Fora da Academia, Mário Leal Ferreira atuou como engenheiro-chefe do Serviço de Água de São Paulo, organizou e dirigiu o Laboratório do Serviço de Águas e Esgotos do Distrito Federal e dirigiu a engenharia sanitária dos Serviços de Saúde do Estado do Rio de Janeiro. Coordenou também o Departamento de Geografia e Estatística do governo federal.
Volta a Salvador através do seu prestígio junto ao presidente Getúlio Vargas, conseguiu uma bolsa da Fundação Ford, iniciando sua trajetória internacional pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, onde se especializou em engenharia sanitária. Em seguida, foi para as Filipinas, atuar junto ao combate à epidemia de febre tifóide. Como bolsista da Fundação Rockfeller, dedicou-se a estudos em engenharia e sociologia. Em países como França e Alemanha, além de nações da América do Sul, desenvolveu estudos e projetos.
Na década de 40, ele retorna a Salvador para apresentar um plano de urbanização para a cidade, como alternativa à proposta defendida pelo francês Alfred Agache, um dos maiores urbanistas do mundo. Os técnicos da prefeitura, comandada então pelo prefeito Durval Neves da Rocha, aprovam a proposta do baiano, mesmo tendo um custo um pouco superior a do francês.
Como lembra o ex-secretário de Planejamento da Prefeitura de Salvador, Manoel Lorenzo, seu plano tem influência do urbanismo progressista, cujo maior expoente era Le Corbusier, e as idéias do urbanista Patrick Geddes, que rejeitava a adoção de modelos, não concebendo uma “cidade tipo”, mas tantas cidades quanto a realidade apresentasse.
“Mário Leal concebia o planejamento como um processo e, por essa razão, previa o detalhamento de cada um dos setores integrantes do zoneamento, quando deveriam ser detalhados os centros de bairro. Em consonância com essa visão processual, aventava duas alternativas para a legislação urbanística: uma, geral, abrangeria toda a zona urbana de uma só vez; outra trataria a cidade por partes/setores, sendo de sua preferência esta última.
No entanto, a alternativa que vingou e se transformou no Decreto-Lei 701/48, foi a primeira”, avalia Lorenzo.
Início do Epucs
Em abril de 1943, começa a funcionar o Epucs, no terceiro andar de um edifício na Praça Cayru. Foram desenvolvidas pesquisas de investigação histórica e científica na cidade e entrevistadas cerca de 4.500 famílias.
Na sua proposta de trabalho, Leal Ferreira avaliava que “corrigir os defeitos de uma cidade ou lhe projetar o desenvolvimento deve ser, antes de tudo, motivo de prescrutação do passado, visando identificar, através de investigação histórica e científica, os fatores que influíram na sua evolução”.
A proposta de trabalho previa um sistema integrado, no qual se articulassem duas redes de avenidas– uma para o tráfego mais lento, de acesso aos bairros, e que seria implantada nas partes mais altas, interligadas por viadutos, e outra, a ser construída nos vales, através de avenidas. Exemplos deste tipo de avenida são a do Vale do Canela e a da Avenida Centenário.
No livro O Macroplanejamento da aglomeração de Salvador, A S. Scheinowitz explica a opção pela rede de avenidas de vale: “Caminhando no meio de jardins, a rede permite uma extrema mobilidade e uma grande segurança, já que o fluxo de carros é isolado das habitações. Além disso, os pedestres não usam essa rede, pois as habitações estão situadas onde chegam também os transportes coletivos. Enfim, a conjugação das avenidas de vale com as redes de esgoto, os canais de drenagem e a distribuição de água facilita muito a manutenção e ampliação dessas infra-estruturas. As avenidas de vale teriam ainda o objetivo de proteger a zona residencial dos ruídos, poeiras, gases de combustão dos automóveis e acidentes”.
O Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador – Epucs, apresentava propostas relacionadas ao encaminhamento de soluções para os problemas de Salvador de então apresentados nas diversas áreas. Na área de Saúde, por exemplo, foi proposta a construção de uma clínica tisiológica no Hospital das Clínicas, no Canela, e o Dispensário Ramiro de Azevedo, ambos voltados ao tratamento gratuito dos portadores de tuberculose, uma doença de alta incidência na época.
O saneamento do Rio Camurugipe também começou com o Epucs.
Na área de turismo, em razão de carência detectada pelo pessoal de Mário Leal Ferreira, foi projetado pelo arquiteto Diógenes Rebouças o Hotel da Bahia, no Campo Grande. Já na área de segurança pública, foi definida a construção da Penitenciária Lemos Brito, no barro de Mata Escura.
A localização e a coordenação do projeto do primeiro Teatro Castro Alves foi uma das contribuições do Epucs na área cultural. Outro projeto desenvolvido pelo Escritório foi a Escola Parque, no bairro de Caixa D’Água, que passou a contar com a direção do educador Anísio Teixeira.
Diretrizes básicas
O prazo para conclusão dos trabalhos do escritório estava previsto para 1946, quando parte do plano foi entregue ao então prefeito Armando Carneiro da Rocha. Foi solicitado um adiamento no prazo de oito meses para encerramento dos trabalhos, mas, em razão da complexidade do plano, foi solicitado um novo adiamento em janeiro de 1947. No dia 11 de março do mesmo ano morre, em razão de problemas gástricos, Mário Leal Ferreira, assumindo o comando o arquiteto Diógenes Rebouças.
Em janeiro de 1948 é criada a Comissão do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador – Cpucs. Sua função seria concluir as pesquisas do Epucs. Em 1949, começa a execução das propostas do Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador. A construção das avenidas Centenário e Amaralina dá início ao plano. Era o começo de uma série de obras propostas pelo Epucs, a exemplo da Avenida Vasco da Gama, ligando o Dique do Tororó ao Rio Vermelho, a Avenida Contorno, ligando a Cidade Baixa a Cidade Alta, o Estádio da Fonte Nova, As avenidas Cardeal da Silva, Mário Leal Ferreira (Bonocô), Antonio Carlos Magalhães, Magalhães Neto, Presidente Castro Branco (atual Tancredo Neves), Garibaldi e Suburbana. Isso sem falar nos viadutos Marta Rocha, da Federação, Nazaré/Barbalho, Fonte das Pedras, entre outros.
Mas a morte de Mário Leal acabou por provocar uma queda no ritmo de trabalho. Em 1958, foi extinta a Cpucs, sendo todo o seu pessoal e acervo transferido para a recém-criada Seção de Planejamento. Um ano mais tarde foi criada a Superintendência de Urbanização da Capital– Sucap, cujo objetivo era executar as obras do sistema viário propostas pelo Epucs.
Na década de 70, surge o Órgão Central de Planejamento – Oceplan, com a finalidade de retomar o planejamento de Salvador, tendo em consideração as novas condições e características da cidade. Na década de 40, Salvador tinha uma população de cerca de 400 mil habitantes. Na década de 60, esse número dobra, chegando hoje a 2 milhões e 500 mil habitantes.
Todo o trabalho de Mário Leal Ferreira foi desenvolvido sem ajuda das tecnologias informacionais de hoje. Naquele tempo, o equipamento era uma régua de calcular e calculadoras que faziam apenas as quatro operações básicas. Além disso, o Epucs enfrentou dificuldades de diversas ordens. Como Salvador não possuía cartografia, todas as plantas da cidade tiveram que ser desenvolvidas. Isso sem falar, que a maioria dos integrantes da equipe não possuía experiência em planejamento urbano, em especial num planejamento interdisciplinar. Desta forma, o Epucs acabou sendo uma escola de planejamento para toda uma geração de profissionais. E o Plano Mario Leal Ferreira cumpriu seu propósito de oferecer à cidade as diretrizes básicas para o seu crescimento.