Por Vagner Campos
EDUFBA – Fale sobre sua vida: infância, adolescência, família…
ANGELINA – Nasci em Salvador, em 1943, plena guerra. Quando eu tinha um ano e meio, meus pais se mudaram para o Rio de Janeiro em busca de médicos que pudessem diagnosticar problemas de artrite reumatóide de minha mãe, à época uma doença praticamente ignorada. Depois de ouvirem as maiores sumidades, uma delas cometeu a barbeiragem de mandar engessar suas duas pernas, durante quase um ano, de modo que ela ficou paralítica, hoje se diz ‘paraplégica’… Com 28 anos.
Apesar de continuar levando vida normal, cuidando da casa, e da única filha, e formando com meu pai, um casal sempre apaixonado, durante os 49 anos que viveram, eu sofri os respingos. Fui muito controlada, tive uma educação rigorosa, estudava em semi–internato (colégio de freiras), o Colégio Sion. Lá estudei 12 anos, de 1950 a 1961, fiz muita bagunça e quase fui expulsa.
Em contrapartida, fiz amizades que conservo até hoje, e os livros me salvaram no meu cotidiano enjaulada. Ficava amiga dos personagens que povoavam meu quarto… Conversava e brincava com eles.
Uma vez, sentada num banco de numa pracinha, com meu pai, comecei a conversar com um velhinho que me escutava com muita atenção. Claro que não lembro o que eu lhe contei, mas não posso esquecer o que ele disse ao meu pai: esta menina vai ser escritora!
Desde criança, fui apresentada a livros, não só por meus pais, que sempre os valorizaram muito, como por uma madrinha possuidora de vasta biblioteca, um padrinho poeta, e o próprio colégio. Uma das minhas professoras de português, um dia, me disse ao elogiar minha redação: menina, você vai ser escritora! Ela, assim, confirmava a profecia do velhinho da praça. Aos nove anos, escrevi e ilustrei meu primeiro livro ‘catando milho’ na máquina de escrever de meu pai. Foi intitulado ‘Férias atrapalhadas com um fim feliz’. Edição de um só exemplar…
Minha adolescência foi típica dos anos dourados. Cinemas em Copacabana, festas todos os sábados, praia no Arpoador, lanches nos primeiros Bob’s, grupos de amigos interessantes. Vi nascer a Bossa Nova, não no apartamento da Nara Leão, mas na casa de uma colega, Anna Maria Portella, que tinha música no sangue. Lá conheci Baden, ainda desconhecido, e outros já famosos ou não, como o maestro Antônio Carlos Jobim que despertava ‘frissons’ com sua beleza madura. Estive na inesquecível ‘Noite do Amor do Sorriso e da Flor’, na Faculdade de Arquitetura, e organizei show no colégio, a exemplo de outros, pois colégios e faculdades foram os primeiros palcos.
As freiras haviam evoluído, João XXIII revolucionava a Igreja, e começamos a participar dos movimentos de Ação Católica: Jec (Juventude estudantil católica) Juc (Juventude universitária católica), e havia também a Juventude operária (JOC) a independente (JIC) e a agrária (JAC). Esses movimentos estimulavam a ação de cristãos se engajarem no momento histórico que era promover as mudanças sociais.
Nossa geração era atenta aos problemas políticos, desde a infância e adolescência.
Ficamos chocadas com o suicídio de Getúlio, acompanhamos cada lance, rádio ligado madrugada adentro, durante o processo de renúncia que culminou tão tragicamente. Participamos, de perto, da famosa greve dos bondes, que parou a cidade, quando os estudantes ainda eram respeitados e os soldados paravam ao vê–los abrir a bandeira nacional. Vivenciei a inauguração de Brasília, dancei valsa com JK, na festa de 15 anos de minha prima, bati papo com Oscar Niemeyer, frequentador dos saraus dominicais da minha tia. E coisas do arco da velha…
Conto tudo isso, e mais teria a contar, porque acho que minha geração ganhou oportunidades ricas. Temos a impressão de que vivemos a História do Brasil por dentro, e não apenas como espectadores.
EDUFBA – Como se deu sua trajetória acadêmica? Quais são os momentos de destaque desta trajetória?
ANGELINA – Em 1962 fiz vestibular para o curso de Jornalismo na PUC do Rio, e para o Instituto de Belas–Artes. Mas no segundo semestre do ano seguinte, meu pai resolveu se mudar para Salvador, com o pretexto de que o Rio estava se tornando um “antro de perdição”. Tinha medo exagerado da propalada liberdade sexual, medo do comunismo, e da filha ter escolhido ser jornalista, profissão que ele considerava perigosa para uma mulher. Acreditava que a Bahia era ainda uma província pacata, namoro em portão, onde as moçoilas bordavam enxovais e faziam footing no Farol da Barra. Mal imaginava que chegamos justamente em época de mudanças radicais na Universidade, cujas alunas, em proporção crescente, nada tinham a ver com as donzelas do imaginário de meu pai.
Aqui eu me transferi para a escola de Belas–Artes como aluna especial, e para a antiga Faculdade de Filosofia no bairro de Nazaré, onde militei, estagiei, me formei e trabalhei e/ou colaborei em todos os jornais baianos.
Eram tempos de pré-reforma universitária. Os estudantes experienciavam as mesmas turmas do princípio ao fim do curso, e todos os cursos se misturavam nas Assembléias quase permanentes, especialmente no Restaurante Universitário, onde até Juscelino foi dialogar. Todos se conheciam pelo nome, e se encontravam nas festas mensais da Residência do Universitário, bailes nas faculdades e até mesmo na missa das 18 horas, em São Bento, onde D. Timóteo e D. Jerônimo pontificavam.
Em 1970, fiz vestibular para o curso de Psicologia, recentemente inaugurado na UFBA. Nesse mesmo ano ganhei uma página no suplemento dominical do falecido Jornal da Bahia. Assinei, durante quase dez anos esta página intitulada ‘Comportamento’, onde, exceto pela censura rigorosa à Imprensa, que se instalou após o golpe de 64, e enrijeceu após o AI–5, eu tinha total liberdade.
Eram tempos que, ninguém melhor do que Chico Buarque descreve em sua composição ‘Rosa dos Ventos’: “na gente deu o hábito de murmurar entre as pregas, de tirar leite das pedras…”
A Reforma Universitária começava a funcionar, as turmas começaram a se esfacelar, e ainda havia um medo enorme. Muitas vezes não sabíamos onde estavam colegas, alguns presos, sumidos, torturados ou mortos.
Em 1974, já formada em bacharel em Psicologia, fui aprovada no concurso do Mestrado da Faculdade de Educação da UFBA.
Tive uma vida paralela ao do meu marido. Ele, apesar de psiquiatra, prestou concurso para professor da Faculdade de Filosofia, vindo a ser meu professor, e anos depois, foi diretor da Escola. Após ter feito comigo a formação em Psicodrama, filiou-se à Escola Brasileira de Psicanálise-Seção da Bahia, assumindo o papel de psicanalista, e assim passamos a seguir caminhos profissionais diferentes.
Após receber o diploma de Psicóloga em 1975, comecei a ensinar no curso de onde acabara de sair, primeiro como professora colaboradora, depois por concurso como professora Auxiliar de Ensino.
Trabalhei um ano na Extensão no J.U., Jornal da Universidade. Gestão de Macedo Costa, sendo Pró-reitor Fernando Perez. Os parceiros eram a jornalista Nadja Miranda, Loreta Valadares, recém chegada do exílio, e Naomar Almeida Filho. Outro trabalho importante foi o Projeto Cansanção, uma mobilização que realizava um trabalho comunitário em pleno sertão baiano, coordenado pela profª. Edileusa Gaudenzi e pelo prof. Antonio Dias.
Fiz formação em Psicodrama da Sociedade Brasileira de Psicodrama e na UFBA trabalhei alguns anos no Instituo de Química, convidada pelo Departamento de Química Orgânica, para coordenar uma experiência em Sociodrama também realizado na Escola de Nutrição. Estudei alguns anos psicanálise, mas não fui totalmente convertida para abrir consultório. Das poucas experiências relacionadas, houve a clinica ‘Comportamento’, da qual fui sócia com meu marido e algumas colegas. Encerramos as atividades porque descobrimos que era impossível conciliar idealismo com ganha-pão em clínicas psicológicas.
Em 2000 iniciei o doutorado na Escola de Comunicação da UFBA, que culminou em tese defendida em 2004.
Saindo um pouco do contexto da academia, em 1966 casei com Mário Nascimento, estudante de Medicina (psiquiatria) que também militara no M.E., fazendo parte da chapa da UEB sob presidência de Sérgio Gaudenzi.
Passamos um ano no Rio, o ano que dizem que nunca acabou, 1968, onde tive nosso primeiro filho, Octavio, enquanto o pai fazia Mestrado de Saúde Mental na FENSP, situada em Manguinhos, título que o levaria mais tarde a assumir a direção da Divisão de Saúde Mental do Estado. Voltamos em 1969.
Em 1971 tive meu segundo filho, Marcos, que se intitula ‘filósofo andarilho’, enquanto o mais velho optou pela advocacia. Ambos estudaram na UFBA, embora o segundo tenha feito posteriormente graduação e doutorado em Filosofia na USP, e o primeiro, fez Mestrado na PUC-SP, onde atualmente termina o doutorado.
EDUFBA – Quem são as suas referências de vida?
ANGELINA – Não posso deixar de citar meus pais, apesar de não ter sido filha muito obediente nem a mulher prendada que eles gostariam que eu fosse. Mas me deram muito incentivo para a leitura, e o que me negavam em roupas novas e discos de rock, contribuíram para formar minha biblioteca. Tive a grande sorte de conviver com todo o tipo de pessoas, e grande parte delas foi referência.
No Rio, Regina e Francisco Pereira Pinto, minha avó pintora e meio anárquica, meu padrinho poeta casado com ela; minha madrinha Leonor Moniz de Aragão que serviu de personagem para uma das minhas histórias publicadas, por sua cultura e amor aos livros.
Na Bahia, meus tios postiços Filinto Borja e Pedro Seixas, ambos médicos, ainda lembrados; meu tio João Garcês Fróes, um sábio; João Lopes Cunha e Anísio Felix, jornalistas tarimbados que tiveram a carreira prejudicada com o fechamento do Jba; Florisvaldo Mattos, que, felizmente, continua batalhando no Jornalismo (e na Poesia também); Jomar Castro, um visionário criador da Bazarte, de onde saíram pintores e gravadores excepcionais como Tripoli Gaudenzi; Augusto Rodrigues, pintor e gravurista que virou uma lenda; O saudoso cineasta baiano Fernando Coni Campos; Oliveiros Guanais, que foi presidente da UNE em 1960; Mercedes Chaves de Carvalho, professora marcante que influenciou meu rumo; Eduardo Saback Dias de Moraes, psiquiatra, professor e diretor da Faculdade de Filosofia da UFBA, e amigo incondicional; Loreta Valadares, militante e mulher de inteligêcia e coragem ímpares. Falar dela, implica falar também do seu marido Carlos Valadares, que continua lutando pelo nosso país; D. Timóteo não precisa de apresentações nem adjetivos. Vinícius de Moraes, que tive o privilégio de conviver em sua estadia na Bahia nos anos 70. Joviniano Neto, que considero o “Dom Quixote contemporâneo”… Além de ter se dedicado sempre a causas perdidas, foi um dos maiores articuladores da Anistia e depois se dedicou a questão dos direitos humanos, tendo sido presidente da Apub várias vezes querendo sempre trabalhar sem ganhar.
E como a sorte não me abandona, sempre conheço mais gente interessante, que admiro e sou grata, como Flávia Garcia Rosa, diretora da EDUFBA. Não digo mais sobre ela, para não parecer puxa-saco.
A lista é muito maior, inclui amigos fiéis, professores marcantes, parentes solidários.
EDUFBA – Você acredita que a juventude desse fim de década difere muito da geração de 90? Quais aspectos são mais importantes para sua análise?
ANGELINA – Acho difícil responder com segurança. Ao me aposentar em 2003, perdi contato com estudantes universitários, meus filhos cresceram, assim como as galeras com as quais eles conviviam. Mas creio que posso repetir o que escrevi em meu livro sobre a geração shopping: que não podemos generalizar ao falar em juventude!
Vemos todos os tipos de tribos. Dos consumistas, cabeças ocas, aos situados, engajados, idealistas. Dos que ‘ficam’ e descartam as meninas, aos que se apaixonam loucamente. Dos que vivem na praia e nos barezinhos da vida, (com o devido respeito a estes lugares) mas desatentos ao que acontece em sua volta. Lamento viverem numa época de violência, de correrem riscos na própria rua ou transporte, de estarem expostos à tentação da tecnologia, das drogas e da corpolatria.
Eles precisam lidar com isso, são cobrados para ter um diploma que não lhes basta para conseguir emprego, e principalmente, lamento pelos que generalizam considerando todos os políticos corruptos e de mau-caráter e desacreditam em mudanças para melhor… Podem contribuir para isso com mais ação.
EDUFBA – Qual sua visão sobre a atual situação do mercado de livros na Bahia e no Brasil?
ANGELINA – Para quem, como eu, mora em Salvador, mas viaja muito, acho lamentável ver livrarias fechando a cada momento, pouca ou nenhuma leitura de grande parte de crianças e jovens, sem falar dos adultos…
Também considero lamentável o alto percentual que as editoras precisam pagar às lojas que vendem livros, dificultando o pagamento digno de seus funcionários, autores e qualidade da produção. E vejo cada vez mais difícil a questão da destribuição de editoras não famosas como as do “sul-maravilha”, como dizia nosso inesquecível Henfil…
EDUFBA – Sobre a UFBA e a atual estrutura da universidade, em todas as instâncias, o que você tem a dizer?
ANGELINA – Infelizmente não posso julgar a UFBA, pois estou completamente afastada dela desde 2003. Sei, por experiência própria, que a juventude não costuma apoiar quem está no poder, geralmente tem razão para isso, mas falar é fácil, difícil é encontrar soluções e agir. Procuro valorizar mais os fatos do que as interpretações, embora haja um autor famoso que diga o contrário. Mas uma das coisas que o estudo de psicologia me deu foi a idéia de ‘percepção seletiva’ e contaminação por identificação grupal. (a publicidade é um exemplo). A predisposição positiva, ou negativa, contribui demais para enxergar vilões, bandidos e mocinhos, mesmo sem fatos comprováveis.
EDUFBA – Você se sente uma pessoa realizada? Por quê?
ANGELINA – Sua pergunta me faz lembrar a frase de um psicanalista carioca, Quinet. Quando lhe perguntam como ele vai, ele responde: cada vez mais insatisfeito graças a Deus! Acho difícil existir uma pessoa ‘realizada’ de verdade. Dizem que uma pessoa se realiza quando planta uma árvore, se casa, tem um filho e escreve um livro. Já fiz tudo isso, e nem assim me sinto realizada. E QUERO ficar cada dia mais insatisfeita! Para poder realizar mais!!!
EDUFBA – Projetos literários pro futuro. São quatro, estou certo?
ANGELINA – Nossa! Você está dedurando minhas crises de megalomania, necessárias para eu não desistir de escrever, devido às condições acima citadas!
Depois de publicar cinco livros, dentre eles, dois para crianças, dois sobre adolescência e um sobre minha tese, não pretendo parar. Na verdade, comecei um livro para crianças que fala sobre costumes, hábitos, mudanças de comportamentos na História do Brasil no século 20. Um livro divertido, não daqueles com datas e nomes para decorar. Estava me divertindo também, quando a tese de doutorado interrompeu e eu o deixei de lado temporariamente. É preciso muita pesquisa!
O outro tem a ver com uma demanda de adolescentes ouvidos quando eu ensinava a disciplina no curso de Psicologia. Ignoravam muita coisa (talvez quem sabe por lerem pouco?) até sobre sexualidade, por incrível que pareça. Mas é preciso checar se esta demanda ainda existe.
Também estou empenhada em coletar reminiscências de pessoas interessantes, vivências que não devem ser enterradas com estas pessoas, mudanças, uma miscelânea ainda não bem definida sobre a Bahia das décadas passadas…
E finalmente, algo que provavelmente vai virar blog: dicas e roteiros de viagens, incluindo locais que os guias não costumam dizer ou saber… seria algo “para quem gosta de viajar e detesta guias e pacotes e lugares comuns (em ambos os sentidos da palavra)”…
EDUFBA – Gostaria de deixar um recado para as pessoas?
ANGELINA – LEIAM!!! LEIAM!!! LEIAM!!!
* Uma homenagem à amiga e primeira colaboradora deste blog. Entrevista publicada originalmente no site da EDUFBA
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