quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Viva a praia livre


Antonio Risério*
Soube, aqui em Brasília, que finalmente cumpriram a determinação judicial para demolir as chamadas "barracas de praia". Parabéns. Baianos civilizados agradecem.
Aquelas construções, para fazer jus ao papelão que desempenhavam na orla marítima da cidade, deveriam ser chamadas mais propriamente de barracas antipraia. Porque interpondo-se entre o observador e as ondas, bloqueavam a visão do mar. Com sua profusão pavorosa de mesas e cadeiras, nos impediam de andar livremente pela praia. Com seu cacofonismo pseudomusical, perturbavam o ambiente e não deixavam a gente ouvir o som do mar. E porque caprichavam na poluição visual - sujando a visibilidade marinha, que se ofertava em tons de verde e azul, entre espumas brancas.
Quando eu era criança, morando na então tranquila rua Visconde de Itaboraí, no bairro de Amaralina, inexistiam barracas de praia. Elas começaram, a aparecer quando eu já entrava na adolescência, me mudando de um prédio ali pelo Jardim de Nazaré para a então também tranquila Airosa Galvão, vizinhança do Morro do Cristo, na Barra.
Mas é claro que a culpa não era das barracas. E sim de sucessivas administrações e dos moradores da cidade, ambos fortemente empenhados em avacalhar nossos sítios marinhos. Tudo na base do embalo da onda de grossura que foi tomando conta de Salvador.
Não faz muito tempo, o pintor e biólogo Ronan Rebouças Caires de Brito escreveu, em artigo publicado aqui mesmo nesse jornal: "Culpamos sempre as barracas... O problema não está aí, o problema está em nós, que concordamos em transformar as praias neste espaço privatizado de incalculável mau gosto e insalubre... O problema é comportamental". Mais: "O pior de tudo é que esta nossa ignorância foi acatada e até estimulada por todos os gestores públicos que por aqui passaram e nenhum deles teve a clareza para compreender a insensatez desta privatização agressiva e nem tampouco a coragem de barrar esse processo insidioso".
Já no tempo em que o desprefeito João Henrique cometeu a insanidade de permitir a implantação de uma favela barraqueira em Piatã, o economista e sociólogo Armando Almeida bateu no ponto certo: "Não é o número de barracas que está em questão. São elas". Para abrir o foco: "É preciso que tomemos uma posição definitiva quanto ao uso de nossa beira-mar". Armando estava mais do que certo. As barracas tinham de ser detonadas, proibidas de invadir predatoriamente a praia. Mas não só elas precisam ser demolidas.
Foi muito bom ver o Clube Português no chão, devidamente demolido. Mas ainda há outros mondrongos e monstrengos que desfiguram a orla e nos fecham a visão do litoral. Como a sede do Esporte Clube Bahia, na Boca do Rio. A igreja nova do Rio Vermelho, que pode muito bem ser construída em outro espaço. Os galpões do cais, no Comércio, que ganharia outra vida com a abertura para o mar. Os galpões entre o Solar do Unhão e o Comando Naval, abrigando coisas supostamente chiques. Os bares que obstruem a contemplação do mar, entre a sereia de Itapoã e o começo da pista para Stella Maris. E outros absurdos que atravancam o caminho do olhar..
Em suma, Salvador deveria promover um amplo e saudável bota-abaixo dessas porcarias visuais que enfeiam ao extremo a cidade. Como bem defendem meus queridos amigos Armando e Ronan, sempre se movendo em função da elevação da nossa qualidade de vida, a Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos precisa de um novo litoral. Temos de ser uma cidade inteiramente aberta para a linha do mar. Com vista limpa e desimpedida de nossas praias. Praias de areia e ondas, não de barracas e outros trambolhos. Praias onde possamos ficar, andar, nadar. Uma cidade, enfim, onde as pessoas tenham o direito de ver e viver o mar.
* Antropólogo e escritor.
Artigo publicado originalmente no jornal A Tarde

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