Marcelo Campos Magalhães *
Quando aceitei o convite para escrever esta coluna, fiz um único pedido ao editor: que pudesse transitar por assuntos variados. E assim tenho procurado escrever sobre temas diversos, que atraem a minha atenção, mas que também creio ser do interesse, pelo menos, de um certo segmento de leitores.
Noto, contudo, que nessas primeiras colunas um ponto em comum parece surgir, permeando assuntos tão distintos quanto estratégia corporativa, cultura e políticas públicas. Esse ponto fala do conceito de diferenciação (ou no extremo oposto de “pasteurização”, como na coluna anterior).
Em marketing, diferenciação pode ser definida como “a capacidade que uma empresa tem de ser percebida como diferente dos concorrentes, em função de suas vantagens competitivas”.
Nas últimas semanas, com tempo para explorar diversos assuntos e áreas de interesse, me deparei com a força de um movimento incrível, bem aqui no meu “quintal”, a cidade de Salvador da Bahia: o movimento Salvador Capital Afro.
A partir da constatação de que “Salvador é o local fora da África onde a negritude é mais visível e inserida no modo de ser, agir e pensar de uma população”, surge uma diferenciação poderosíssima, com potencial para atrair visitantes de todo o mundo em busca de vivências únicas resultantes desse processo.
Mas o movimento me impressiona por parecer almejar algo bem mais ambicioso que a mera ampliação do potencial turístico da cidade. Ao se propor a reconectar a cidade com essa sua “verdade”, busca o “fortalecimento e valorização de lugares, roteiros, manifestações culturais e de quem já está fazendo acontecer na cidade”.
E é aí que o movimento se mistura também com uma política pública construída de baixo para cima, que parte de uma realidade já existente – a valorização efetiva da cultura e características próprias da cidade e do seu povo pela própria população – e articula estratégias e ações para potencializar esse patrimônio e gerar valor, inclusive no aspecto econômico.
Como parte da minha pesquisa para entender melhor o que está acontecendo na cidade, visitei nas últimas semanas alguns dos locais de Salvador onde se percebe o potencial desse movimento já como realidade. Em uma tarde de andanças, pude visitar em um roteiro a pé a Cidade da Música da Bahia, a Casa das Histórias de Salvador, assim como o reformado Mercado Modelo, e a nova galeria de arte no seu subsolo. Investimentos públicos alinhados com o movimento e que valorizam os aspectos diferenciadores da cidade.
Visitei o espaço Doca 1, um polo de Economia Criativa situado no porto de Salvador, com café, livraria e restaurante e espaço de coworking. Foi uma experiência fantástica por espaços que, mesclando o histórico e o inovador, representam a cidade com muita qualidade.
E olhem que nem deu para contar em detalhes a parte de subir o Elevador Lacerda e transitar pela Rua Chile e seus novos hotéis e “roof tops”, indo depois em direção à Praça da Sé, Catedral, Pelourinho, e terminando no Santo Antônio Além do Carmo, com suas pousadas, restaurantes e o Museu do Mar. Se for em um domingo, ainda é possível assistir a um espetáculo de música clássica no parque do queimado, em pleno bairro da Liberdade, com os jovens do projeto Neojiba.
Nesse roteiro me impressionou sobretudo a presença dos Soteropolitanos, de todas as idades, e representando a multitude racial e cultural da cidade. A valorização do lugar pelo povo do lugar é um aspecto fundamental. E ao se assistir os muitos depoimentos e retratos da evolução histórica e cultural mais recente da cidade, o que se percebe fundamentalmente é essa apropriação e orgulho do nosso povo pela nossa diversidade e diferenciação.
Orgulho esse que parece potencializar o poder criativo e o empreendedorismo em diversas áreas como a culinária, o design, a moda e a produção artística e cultural.
Isso tudo com um nível de qualidade e diferenciação fantásticos, fazendo com que a Cidade da Bahia escape da “pasteurização” dos “Time Out Markets”, e da aparência de verdadeiros parques temáticos que encontramos em várias outras cidades turísticas pelo mundo afora.
Uma questão surge a partir das minhas andanças e observações, e foi objeto de diversas conversas e reflexões sobre a diferenciação da cidade: o que faz de Salvador única, é mais a miscigenação, o sincretismo, do que propriamente a herança da negritude em si? Na voz do poeta, a loucura está na mistura.
Assim enxergo o movimento Salvador Capital Afro como um ponto de partida, uma referência que nos permite valorizar também, e cada vez mais, as diversas origens e facetas dessa cultura vibrante e original.
Esse texto é um pequeno testemunho e um convite a todos aqueles, baianos ou não, que tenham a curiosidade de presenciar algo tão importante como esse processo de reconexão de uma cidade consigo mesma, e o imenso e pouco óbvio potencial de geração de valor econômico para a população e os empreendedores que catapultarem esse potencial em negócios.
Tem que abrir a cabeça, como se diz aqui, vir com fé, ir a pé e entronizar uma certa “baianidade nagô”. Se permitir apreciar não o perfeito, mas o único dessa experiência.
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