domingo, 23 de junho de 2024

O novo planeta Portugal


Ruy Castro*

Leitores habituados a ir a Portugal nos últimos tempos e a se encantar com a vida e a euforia de suas cidades parecem acreditar que sempre foi assim. Daí estranharem quando o classifiquei outro dia ("Desmemória coletiva") de ser, antes do dia 25 de abril de 1974, o país "mais triste e atrasado da Europa". "Como assim?", perguntaram. "Que milagre aconteceu nesses 50 anos?"


 É uma resposta que deixo aos economistas. Só posso descrever como era naquele tempo —porque eu estava lá. Era o país dos homens de cinza e das mulheres de preto, em permanente luto por uma vida sem expectativas. Uma ditadura de 48 anos dependente da receita colonial e fascista. 

A polícia política por toda parte. Ninguém era estimulado a investir, a se arriscar. O analfabetismo batia os 60%. O congelamento dos táxis e dos aluguéis, de décadas, dizia tudo —os carros e os imóveis caíam de velhos, assim como o país.

Aliás, era o país dos velhos. Eu tinha 26 anos e não via gente da minha idade ao meu redor. Os moços estavam na África, na guerra contra os movimentos de libertação de suas colônias, Angola, Moçambique e Guiné —os poucos nas ruas de Lisboa eram os mandados de volta, ainda de farda, sem um braço ou perna, perdido em combate. Era uma guerra impopular, que sangrava o país e que o governo mantinha com dinheiro tomado aos bancos. A imprensa, esmagada pela censura, mentia sobre o seu andamento —todos já a sabiam perdida. As moças, inexpugnáveis, viviam trancadas em casa. Os costumes eram do século 13.

Portugal era um belíssimo túmulo ao sol, mas nem o sol lhe servia para nada. Enquanto a Espanha, também uma ditadura, fervia de turistas, tudo conspirava contra eles em Portugal. Um visto de entrada era uma agonia. Até a Coca-Cola era proibida. Todos os dias tinham a modorra dos domingos.

Não é que Portugal seja hoje outro país. É outro planeta.

* Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues, é membro da Academia Brasileira de Letras

sábado, 22 de junho de 2024

Aborto e Saúde Publica


O aborto induzido é um componente essencial dos cuidados de saúde da mulher. Como todas as questões médicas, as decisões relativas ao aborto devem ser tomadas pelos pacientes em consulta com os seus prestadores de cuidados de saúde e sem interferência indevida de terceiros. Como todos os pacientes, as mulheres que abortam têm direito à privacidade, dignidade, respeito e apoio.
Muitos fatores influenciam ou exigem a decisão de uma mulher de fazer um aborto. Eles incluem, mas não estão limitados a, falha contraceptiva, barreiras ao uso e acesso a contraceptivos, estupro, incesto, violência entre parceiros íntimos, anomalias fetais, doenças durante a gravidez e exposição a medicamentos teratogênicos.
As complicações da gravidez, incluindo descolamento prematuro da placenta, hemorragia da placenta prévia, pré-eclâmpsia ou eclâmpsia e problemas cardíacos ou renais, podem ser tão graves que o aborto é a única medida para preservar a saúde de uma mulher ou salvar a sua vida.
Onde o aborto é ilegal ou altamente restrito, as mulheres recorrem a meios inseguros para pôr fim a gravidezes indesejadas, incluindo traumas abdominais e corporais autoinfligidos, ingestão de produtos químicos perigosos, automedicação com uma variedade de medicamentos e dependência de prestadores de aborto não qualificados. Hoje, cerca de 21 milhões de mulheres em todo o mundo realizam abortos inseguros e ilegais todos os anos, e as complicações decorrentes destes procedimentos inseguros são responsáveis ​​por aproximadamente 13% de todas as mortes maternas, quase 50.000 anualmente.
Os melhores cuidados de saúde são prestados livres de interferências políticas na relação médico-paciente. A tomada de decisões pessoais por parte das mulheres e dos seus médicos não deve ser substituída por ideologia política.
* American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOGc)

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Salvador Capital Afro. Uma política pública construída a partir da população.




Marcelo Campos Magalhães
*

Quando aceitei o convite para escrever esta coluna, fiz um único pedido ao editor: que pudesse transitar por assuntos variados. E assim tenho procurado escrever sobre temas diversos, que atraem a minha atenção, mas que também creio ser do interesse, pelo menos, de um certo segmento de leitores.

Noto, contudo, que nessas primeiras colunas um ponto em comum parece surgir, permeando assuntos tão distintos quanto estratégia corporativacultura e políticas públicas. Esse ponto fala do conceito de diferenciação (ou no extremo oposto de “pasteurização”, como na coluna anterior).

Em marketing, diferenciação pode ser definida como “a capacidade que uma empresa tem de ser percebida como diferente dos concorrentes, em função de suas vantagens competitivas”.

Nas últimas semanas, com tempo para explorar diversos assuntos e áreas de interesse, me deparei com a força de um movimento incrível, bem aqui no meu “quintal”, a cidade de Salvador da Bahia: o movimento Salvador Capital Afro.

A partir da constatação de que “Salvador é o local fora da África onde a negritude é mais visível e inserida no modo de ser, agir e pensar de uma população”, surge uma diferenciação poderosíssima, com potencial para atrair visitantes de todo o mundo em busca de vivências únicas resultantes desse processo.

Mas o movimento me impressiona por parecer almejar algo bem mais ambicioso que a mera ampliação do potencial turístico da cidade. Ao se propor a reconectar a cidade com essa sua “verdade”, busca o “fortalecimento e valorização de lugares, roteiros, manifestações culturais e de quem já está fazendo acontecer na cidade”.

E é aí que o movimento se mistura também com uma política pública construída de baixo para cima, que parte de uma realidade já existente – a valorização efetiva da cultura e características próprias da cidade e do seu povo pela própria população – e articula estratégias e ações para potencializar esse patrimônio e gerar valor, inclusive no aspecto econômico.

Como parte da minha pesquisa para entender melhor o que está acontecendo na cidade, visitei nas últimas semanas alguns dos locais de Salvador onde se percebe o potencial desse movimento já como realidade. Em uma tarde de andanças, pude visitar em um roteiro a pé a Cidade da Música da Bahia, a Casa das Histórias de Salvador, assim como o reformado Mercado Modelo, e a nova galeria de arte no seu subsolo. Investimentos públicos alinhados com o movimento e que valorizam os aspectos diferenciadores da cidade.

Visitei o espaço Doca 1, um polo de Economia Criativa situado no porto de Salvador, com café, livraria e restaurante e espaço de coworking. Foi uma experiência fantástica por espaços que, mesclando o histórico e o inovador, representam a cidade com muita qualidade.

E olhem que nem deu para contar em detalhes a parte de subir o Elevador Lacerda e transitar pela Rua Chile e seus novos hotéis e “roof tops”, indo depois em direção à Praça da Sé, Catedral, Pelourinho, e terminando no Santo Antônio Além do Carmo, com suas pousadas, restaurantes e o Museu do Mar. Se for em um domingo, ainda é possível assistir a um espetáculo de música clássica no parque do queimado, em pleno bairro da Liberdade, com os jovens do projeto Neojiba.

Nesse roteiro me impressionou sobretudo a presença dos Soteropolitanos, de todas as idades, e representando a multitude racial e cultural da cidade. A valorização do lugar pelo povo do lugar é um aspecto fundamental. E ao se assistir os muitos depoimentos e retratos da evolução histórica e cultural mais recente da cidade, o que se percebe fundamentalmente é essa apropriação e orgulho do nosso povo pela nossa diversidade e diferenciação.

Orgulho esse que parece potencializar o poder criativo e o empreendedorismo em diversas áreas como a culinária, o design, a moda e a produção artística e cultural.

Isso tudo com um nível de qualidade e diferenciação fantásticos, fazendo com que a Cidade da Bahia escape da “pasteurização” dos “Time Out Markets”, e da aparência de verdadeiros parques temáticos que encontramos em várias outras cidades turísticas pelo mundo afora.

Uma questão surge a partir das minhas andanças e observações, e foi objeto de diversas conversas e reflexões sobre a diferenciação da cidade: o que faz de Salvador única, é mais a miscigenação, o sincretismo, do que propriamente a herança da negritude em si? Na voz do poeta, a loucura está na mistura.

Assim enxergo o movimento Salvador Capital Afro como um ponto de partida, uma referência que nos permite valorizar também, e cada vez mais, as diversas origens e facetas dessa cultura vibrante e original.

Esse texto é um pequeno testemunho e um convite a todos aqueles, baianos ou não, que tenham a curiosidade de presenciar algo tão importante como esse processo de reconexão de uma cidade consigo mesma, e o imenso e pouco óbvio potencial de geração de valor econômico para a população e os empreendedores que catapultarem esse potencial em negócios.

Tem que abrir a cabeça, como se diz aqui, vir com fé, ir a pé e entronizar uma certa “baianidade nagô”. Se permitir apreciar não o perfeito, mas o único dessa experiência.


Marcelo Magalhães 
marcelo.magalhaes@autor.moneytimes.com.br
Marcelo Magalhães é um consultor e executivo com mais de quarenta anos de experiência em gestão, e como CEO de companhias de capital aberto. Baiano de Salvador, está em um período sabático se dedicando a estudos e projetos ligados a sustentabilidade e projetos sociais.