Histórias submersas da Baía de Todos os Santos mostram o passado fora dos livros e atraem piratas.
Fernanda Santana*
Embaixo d’água, um dos conhecimentos básicos que mergulhadores, exploradores e arqueólogos subaquáticos compartilham é saber diferenciar sucata de história. No fundo do mar, qualquer rastro de ferrugem pode indicar uma arqueologia perdida, sobretudo na Baía de Todos-os-Santos (BTS), um dos principais sítios arqueológicos subaquáticos brasileiros.
O tempo e a falta de manejo deterioram parte da história contada por esses sítios, caracterizados por abrigar vestígios materiais da ação humana. As embarcações que daqui saíram ou tentaram aportar, mas naufragaram, trazem informações sociais, históricas e comportamentais do seu tempo. Das 18 localizadas pelo projeto Observabaía, ligado à Universidade Federal da Bahia (Ufba), cinco estão em alto risco de vulnerabilidade. Em 1998, o historiador José Góes de Araújo calculou mais de 150 embarcações naufragadas na BTS.
Como o patrimônio subaquático não é visto, raramente é lembrado. E, no esquecimento, a dilapidação fica mais fácil. “Essas histórias ficaram subalternas, não são as histórias dos livros. Quem eram os tripulantes? Para onde iam, o que representava chegar num porto de Salvador no século 19 e procurar seus amigos?”, questiona Rodrigo Torres, doutor em arqueologia pelo Nautical Archaeology Program da Universidade do Texas (EUA).
A história dos documentos, segundo ele, é a dos burocratas. A dos sítios arqueológicos subaquáticos, “fonte primária insubstituível”. A BTS, como a costa do Recife e Rio de Janeiro, é um polo de naufrágios. Isso tem explicação. A Baía que margeia Salvador na sua porção oeste e o Recôncavo Baiano ao leste foi a maior rota de produtos do Brasil Colonial.
Os colonizadores buscavam estar à margem de ambientes seguros e navegáveis como baías. Isso porque tinham um modelo agroexportador e queriam tempo para se proteger de ataques. A BTS “favoreceu uma ocupação mais estável”, explica Caio Adan, historiador, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) e coordenador do Centro de Estudos do Recôncavo.
A falta de preservação desse patrimônio soterra um passado que acontecia por intermédio das águas e que pode não ter sido contado. Os mergulhos começam um dia antes de o barco sair da costa. É preciso preparar o barco, combustível, cilindro e comida.
O investimento de uma saída de mergulho custa, em média, R$ 400 por pessoa. “Eu só posso falar que eu procuro, não posso dizer que achei”, brinca Mário Cortizo Andion, rebatizado popularmente como Mário Mukeka, 67, mergulhador, sobre os tesouros submersos que movem o imaginário de outros mergulhadores que descem cotidianamente à Baía.Como ninguém está oficialmente procurando, ninguém encontra, também oficialmente, nada. Moqueca é filho de piloto de avião, mas preferiu o mar. Isso depois de, em 1990, encontrar uma idosa, na Ladeira de São Bento, em Salvador, que o indicou a existência de centenas de moedas de ouro no mar de Amaralina. A praia está fora da Baía, que depois Mário conheceria de ponta a ponta. “Já mergulhei na BTS mais de cinco mil vezes”, calcula o mergulhador, que sempre viveu do mar, mas em atividades de guia Desde a infância, quando veraneava em Itaparica, ou no dia a dia, no Porto da Barra, Moqueca mergulhava sem equipamento para encontrar tesouros. “A busca de coisas do mar nunca me rendeu dinheiro, mas eu sempre trabalhei do mar”, diz Moqueca, que nunca encontrou as moedinhas douradas prometidas pela senhora desconhecida. “Todo mergulhador tem um pouco de pirata, mas a gente fala que não. Você está andando por aí, tropeça num baú antigo de ouro e vai procurar o dono?”, pergunta um mergulhador, que pediu para não ser identificado. Há mergulhadores que acreditam num mundo de riquezas ainda por desbravar.
O movimento das marés, assim como soterra naturalmente naufrágios, pode revelar outros, e sabe lá o que pode surgir. “Se alguém achou, está de bico calado, porque quem vai falar?”, pergunta outro mergulhador. A Marinha do Brasil respondeu que não há registro de roubo de patrimônio na BTS na Ouvidoria da Capitania dos Portos da Bahia sobre, nem projeto em andamento para preservação em sítio ou pedidos de exploração em sítios. A Marinha é responsável por fiscalizar e autorizar atividades de pesquisa e exploração. Um dos canais de comunicação dos mergulhadores e caçadores com as riquezas do mar são os pescadores. Quando lançam a rede no mar e o retorno levanta suspeita - por exemplo, se vem uma louça no lugar de um peixe -, eles ligam para mergulhadores conhecidos. Quem hoje mergulha no mar da BTS logo é avisado que, o que for encontrado no mar, lá deve ficar. “Antigamente, era muito aquele negócio de achar tesouro. Hoje a gente fala que temos que deixar tudo ali”, conta Marcos de Paula, dono de uma empresa de mergulho localizada no Comércio. A arqueologia da BTS pode ser visitada por não mergulhadores. Para isso, há duas possibilidades: um curso de uma semana, em que você sai habilitado para mergulhar em qualquer parte do mundo; ou um batismo, em que o professor dá indicações básicas para mergulhos de até 12 metros de profundidade. “Os naufrágios mais visitados são esses mais rasos. Temos aqui na BTS de quatro a nove metros de profundidade”, diz Marcos. Fora d’água, em Salvador, o público pode conhecer materiais retirados do mar no Museu de Etnologia e Arqueologia e no Museu Náutico da Bahia, na Barra, onde estão expostas cinco vitrines de artigos retirados do Galeão Sacramento, um navio que bateu no Banco de Santo Antônio e naufragou. Em novembro de 2020, , um passo foi dado para criar novos pontos de mergulho em naufrágios e incentivar o turismo náutico. Depois de quatro anos sem fazer a travessia Salvador-Itaparica (maior ilha da BTS), o ferry-boat Agenor Gordilho foi afundado. A ideia de criar afundamentos divide opiniões, mas existe um consenso entre os pesquisadores que estudaram invasões na BTS. Estruturas artificiais podem servir como focos de proliferação para espécies exóticas, explica Francisco Barros, oceanógrafo, doutor em Ecologia Marinha pela Universidade de Sidney e professor da Ufba. Na foz do Rio Paraguaçu, pode estar soterrado um dos grandes afundamentos que se têm registro histórico na BTS. Foi o historiador José Góes quem apontou nesta direção: o navio holandês teria sido parado pela lama e afundou. “Muitas histórias deixam de ser contadas, por falta de uma maneira organizada. Como se reconstruirá essa história apagada?”, pergunta Carlos Caroso, antropólogo e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Um dos desafios é fazer com que a cultura e natureza não estejam em confronto. “A BTS é um museu aberto”, diz Caroso. Mas, essas riquezas históricas vão muito além dos naufrágios. As bordas da Baía eram habitadas por tupinambás que também usufruíam da BTS - para pescar e se locomover. “O que é contado dessas histórias indígenas? Porque ainda pode existir muita coisa lá embaixo”, acredita Caroso.
SAMBAQUIS
Os tupinambás viviam nos entornos da Baía e técnicas ainda hoje utilizadas por pescadores foram herdadas desse povo que tinha estreita relação com o mar. Uma delas é a camboa, armadilha de palhas de piaçava que, transformadas em esteiras, aprisionam o pescado.
A materialidade dessas vivências está gravada na Baía por meio dos sambaquis, sítios arqueológicos construídos por populações pesqueiras que ocuparam ambientes costeiros entre 600 e sete mil anos atrás. “Os sambaquis são acúmulos de restos alimentares como conchas, ossos de peixes, frutos e sementes'', explica Carlos Costa, doutor em Arqueologia pela Universidade de Coimbra e professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB). O arqueólogo Valentin Calderón identificou pelo menos quatro sambaquis na região da BTS. Depois, pesquisadores de universidades públicas identificaram mais quatro. Dos oito, apenas três foram escavados. Faltam pesquisas dedicadas a investigar esse outro lado da história. Não por falta de interesse, mas de sambaquis, como em Periperi, Ilha de Cajaíba, Ilha das Vacas, dos Frades, Santo Amaro, Santiago do Iguape etc”, completa Costa. Mais descobertas sobre esses sambaquis, opina ele, "poderiam permitem saber um pouco do modo de vida das populações antes da ocupação colonial na Bahia". No futuro, os vestígios das vidas de quem vive nos entornos se misturarão mais uma vez à Baía.
*Reporter do Correio da Bahia.
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