Paulo Fábio Dantas Neto*
O desaparecimento do ex-governador Waldir Pires enseja um sentimento de consternação que, ultrapassando o campo de seus familiares, amigos, correligionários e aliados atinge, inclusive, adversários. Ao lado disso, também é geral o sentimento de perda compartilhado por todos os baianos e brasileiros minimamente informados sobre quem ele foi e sobre o fecundo e exemplar papel que cumpriu em momentos cruciais de nossa história contemporânea.
Em linha com esses sentimentos difusos afloram merecidas menções à integridade moral do seu caráter e ao sentido ético de sua conduta política, seja pela coerência ideológica, seja pelo respeito ao interesse e patrimônio públicos. A todas essas manifestações junto-me apenas como mais um.
Peço, contudo, licença para externar uma interpretação sobre dois traços de natureza política que me parecem relevantes na sua longa vida pública e que, a meu juízo, não têm merecido tanto destaque nas homenagens que se tem feito à sua memória. Ao lado do lutador nunca deixou de estar o homem de diálogo e, ao lado das convicções, sempre esteve nele a responsabilidade para com as consequências de suas decisões, inclusive quando as primeiras mostraram equívocos nas segundas.
Entre suas campanhas ao governo da Bahia (a derrotada de 1962 e a vitoriosa de 1986) Waldir aprendeu a não refugar alianças que viabilizassem a vitória da causa democrática. Em 62 chegou perto dela. A distância talvez fosse vencida com alianças mais diversificadas e afirmativas na capital (Virgildásio Sena a prefeito, não só Osório Vilas Boas) e um pouco mais de concessões veniais à política tradicional no interior, tendo Luís Viana Filho como opção mais realista ao Senado. O equilíbrio dos dois temperos baianos ajudou a eleger a dupla de candidatos de sua chapa ao Senado (Balbino e Josaphat Martinho) mas a escassez de alianças ao governo ajudou seu adversário populista, aliás apoiado pelo Presidente Jango. O hiato entre o bom, mas não bastante, desempenho eleitoral de Waldir e seu relativo isolamento na sociedade política antecipava, no cenário baiano, o impasse da estratégia nacional popular, cujo avanço nas eleições de 62 e no plebiscito de 63 em vez de inibir atiçou ânimos golpistas até a crise terminal do regime da Carta de 46.
Em 1986 deu-se o oposto. Curtido pelo revés, Waldir dobrou com firmeza resistências “à esquerda” e fez o que precisava ser feito: alianças com ex-aliados do carlismo (Luís Viana Filho, inclusive) para derrotar o arranjo de poder estadual firmado, há duas décadas, à sombra da autocracia nacional. Seu governo, embora democrático e honrado, não consolidou a brilhante vitória eleitoral. Em torno desse fato, em vez de autocríticas sérias, por parte das forças que apoiaram a campanha e integraram o governo, criou-se a lenda de que isso não ocorrera por dois erros pessoais de Waldir. O de ter sido pouco agressivo no “desmonte” do carlismo no interior e o de ter deixado o governo em 1989 para se candidatar à Vice–presidência da República ao lado de Ulisses Guimarães.
Trata-se de uma dupla lenda, primeiro porque o tal desmonte era impossível a não ser que Waldir optasse pelo mesmo chicote contra o qual vencera as eleições. Se erro houve ele esteve, sim, na tentativa inicial de montar um governo “de esquerda” numa Bahia conservadora. Tentou corrigi-lo a tempo após a eleições municipais de 88, conferindo mais espaço a aliados fora da esquerda, ao preço de sofrer, na AL e fora dela, críticas abertas ou veladas por estar sendo “condescendente” com forças conservadoras, quando estava, antes de tudo, respeitando o resultados das urnas nos municípios.
Sua saída do governo, em 1989, viu-se, depois, que foi mesmo um erro grave. Mas longe de ter sido individual, como disseram engenheiros de obras prontas, foi cometido com a torcida a favor de setores mais conservadores do seu governo (que queriam a ascensão do vice Nilo Coelho) e o silêncio de boa parte da esquerda, incomodada com a condição de vidraça e ávida por voltar, com a candidatura de Lula, a ser estilingue. Na época eu integrava a direção do PCB e era seu único deputado estadual, suplente em exercício. Lembro do que dissemos a Waldir, quando consultados sobre a decisão a tomar. Liderados pelo deputado federal Fernando Sant’anna dissemos que ele deveria ir à eleição junto com Ulisses, embora o nosso partido tivesse Roberto Freire como candidato a presidente e se arriscasse, com a saída de Waldir do governo, a perder, como perdeu, seu único mandato na AL, em virtude do retorno de titulares que compunham o secretariado. Por isso jamais seus aliados do PCB nos sentimos à vontade para responsabilizar Waldir, individualmente, por aquele equívoco coletivo e pelo detalhe lateral que foi o haraquiri partidário ao qual nos resignamos.
Transferir a responsabilidade foi, contudo, atitude difusa no campo da esquerda, a ponto de na pré-campanha de 1990, mesmo diante do risco de retorno do carlismo pelas urnas, passar meses a fio discutindo se devia “aceitar” Waldir, então filiado ao PDT, na “frente popular” que planejava fazer, como terceira via, contra a oposição carlista e contra o governo do PMDB. Deu no que deu, como se sabe. Mas é vívida em mim a lembrança da chegada imprevista de Waldir, então no vigor dos seus 63 anos de idade, a uma dessas reuniões em que estavam presentes todos os principais dirigentes e parlamentares daqueles partidos. Olhando no olho de um(a) por um(a), assumiu que deixar o governo fora um erro sim – o que mostrava a distância entre a lucidez retrospectiva que naquele instante o ator político já podia ter e a visão equivocada que tivera ao precisar agir, um ano antes, no calor da hora. Mas não deixou de, ainda com os olhos firmemente postos em seus interlocutores, lembrar de que não recebera, à época, de nenhum daqueles partidos, nem do seu, crítica à decisão que iria tomar.
A roupa lavada entre aliados não impediu Waldir de publicamente assumir, como líder que se respeita, a responsabilidade pessoal pelo erro. Iniciou, em meio a muitos percalços, a persistente tentativa de corrigi-lo, jamais se afastando da cena política e da frente democrática, enquanto teve saúde. É esse o agradecimento mais sincero que minha memória política pode desejar que a Bahia faça a esse seu líder venerado na morte mas nem sempre devidamente valorizado em vida.
Outros episódios houve, mais adiante, em que essa valorização, mais uma vez, não compareceu. Mas se Waldir não fez disso cavalo de batalha nem pretexto para fugir da raia, não me cabe levantar mais exemplos aqui, como fiz com aquele de 1990, que testemunhei e do qual diretamente participei.
De todo modo penso que a Bahia e o Brasil devem a Waldir Pires não só a homenagem a um homem público ético, coerente e lutador, mas a um político que aprendeu, com a ditadura que resolutamente enfrentou e com a transição democrática que ajudou a conduzir, uma lição definitiva: a de que a política democrática não é a de uma personalidade ou a de um partido, mas obra coletiva de uma sociedade e de políticos responsáveis, que saibam dialogar por um presente melhor e, em nome do futuro, perdoar, embora sem nada esquecer.
Dialogar sem tergiversar e perdoar sem esquecer são atitudes que fazem uma vida pública valer a pena. Valeu a luta, Waldir – mais ainda a labuta – lado a lado com você. Descanse em paz. Liderados seus permanecerão – ainda que não mais consigo, mas ao lado de jovens que já chegaram, que chegam e chegarão – na busca contínua, persistente, de um tempo novo de crescer e construir.
*Paulo Fabio Dantas Neto é Cientista político e professor da UFBa. Artigo político especial para o Bahia em Pauta
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