Paulo Fábio Dantas Neto*
Apesar do verniz jurídico da polêmica sobre a revisão da base de cálculo do IPTU em Salvador, reitera-se, agora, um conflito político que tem história. Várias vezes, em 60 anos, confrontaram-se, de um lado, prefeitos dispostos a alterar situações financeiras críticas que deixam a prefeitura sem autonomia efetiva e, de outro, a militância contra tributos municipais, praticada por diferentes segmentos empresariais, cujos interesses são quase sempre patrocinados, ou usados, pelo governo estadual, ainda mais se governador e prefeito são de correntes ou partidos adversários. "Interesse do contribuinte" é biombo retórico que torna o conflito político e econômico menos transparente. Numa breve série de artigos que com esse se inicia, aludirei a exemplos históricos, antes de chegar ao atual.
Osvaldo Gordilho (PSD), um "balbinista", foi prefeito de 1951 a 1953, nomeado e demitido pelo governador Regis Pacheco, ligado a outra facção do PSD. Sua gestão quis dar ao município estrutura financeira sólida, uma premissa para intervenções mais ambiciosas no sistema viário e estímulo à expansão urbana. Seu foco fixou-se no problema tributário. Mais de mil recursos judiciais comprometeram a vigência da revisão que procedeu no Imposto Predial.
Em 1953 surgiu divergência entre Gordilho e Regis pelo apoio, do primeiro, à pre candidatura de Antônio Balbino ao governo do estado. O pretexto para demitir o prefeito veio quando a Câmara concedeu abono salarial ao funcionalismo, via aumento do Imposto de Indústrias e Profissões. A sanção do prefeito à lei desencadeou uma onda de críticas pela imprensa, sob o comando de entidades representativas do comércio e da indústria. A ação das "classes conservadoras" foi rápida e implacável. Entrevistaram-se com o governador e ouviram dele a afirmação de que o prefeito agira impropriamente. Regis pediu uma semana para resolver a questão. Dito e feito. O motivo real da demissão de Gordilho foi a sucessão estadual, mas o conflito empresarial foi pretexto útil ao Governador para remover um obstáculo político.
Sendo o prefeito eleito, as coisas não se resolvem com a caneta, mas isso não impede desfechos contra a autonomia municipal. Foi assim com Hélio Machado (PDC; 1955-1959), eleito por voto direto, em 1954, com expressiva votação. A popularidade junto a um eleitorado pobre, inflado pela urbanização recente, estimulava sua ambição política. Abrindo várias frentes de luta por autonomia administrativa e financeira, Machado esbarrou em controvérsias sobre sua ética administrativa, em interesses empresariais descontentes com sua política tributária e em interesses políticos desafiados quando ele, adversário do já então governador Balbino, quis concorrer ao governo estadual.
Uma campanha de setores empresariais da cidade, apoiada por A TARDE, arrancou-lhe concessões na política tributária. Foi emparedado, mesmo após esse recuo, por ações judiciais de contribuintes e credores e um boicote do comércio aos tributos municipais. Além de mandados de segurança contra o Imposto de Indústrias e Profissões, suspenderam o pagamento de todos os tributos, em protesto contra a "tolerância" da prefeitura para com os camelôs e contra o reajuste do Imposto Predial.
O prefeito não cedeu no Predial, mas no de Indústrias e Profissões aceitou redução de 35% e o parcelamento dos débitos, em troca da retirada dos mandados de segurança. Mas a tempestade contestatória prosseguiu, sem lhe dar fôlego. As concessões feitas enfraqueceram seu discurso populista voltado ao urbano pobre e subtraíram ao erário, já depauperado e endividado, receitas essenciais a um desempenho administrativo razoável. No último ano, a gestão cambaleou ferida de morte financeira e política e o prefeito renunciou ao cargo três meses antes da conclusão do mandato. Cúmplice e virtual beneficiário da má sorte do prefeito, Balbino perdeu, contudo, a luta pela própria sucessão. A Bahia tradicional - que não gostava dele, nem de Machado - fez o serviço completo.
Artigo publicado em A Tarde, 07/03/2014 - primeiro artigo de uma série de 4 , sobre o tema
* Professor de Ciência Política da Ufba
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