A Cidade do Salvador fala de modo enfático sobre as coisas do Brasil. Desde o arraial de Caramuru ao status de capital da colônia, passando pelos poemas de Gregório de Matos e pelas lutas da independência, ela grita sobre nossa condição. Nesses dias ela tem sido especialmente eloquente. A luz dourada que banha o lugar onde ela se ergueu está no auge do seu brilho. Num típico janeiro sem chuvas, as águas da baía e, mais ainda, as do mar aberto que começa no Farol da Barra, exibem cores intensas e límpidas, azuis e verdes e cobres e pratas, que são mais ricas do que podem ficar nas fotografias. Os muitos prédios feios e as fachadas deformadas de antigos sobrados confirmam as piores observações de Lévi-Strauss. Me lembro da cidade que eu vi quando vim aqui menino — e, depois, da que conheci na passagem dos meus 17 para 18 anos. Uma imagem tomada por Orson Welles no filme que ele começou a fazer sobre jangadeiros cearenses que desceram de jangada de Fortaleza até o Rio mostra Salvador como uma obra-prima urbanística. Stefan Zweig escreveu, entre muitas outras coisas para as quais deveríamos prestar mais atenção, que “o Brasil tem as cidades mais bonitas do mundo”. Talvez ele estivesse empolgado demais com o contraste entre o doce Brasil e a Europa enlouquecida da segunda metade dos anos 1930. Mas é notável que fosse possível que alguém tão culto e tão inteligente escrevesse tal frase a sério. Porque hoje nós podemos dizer que as cidades brasileiras estão entre as mais feias do mundo todo. Lévi-Strauss, ao contrário de Zweig, não se mostrou impressionado com a beleza de Salvador (o Rio, para ele, era feio). Percebeu, antes, que os meninos pobres das ruas da Bahia esmolavam ser fotografados, sem nem sequer esperarem ver as fotografias depois. E entendeu que o tempo só fazia e só faria mal ao urbanismo brasileiro. Tudo fadado a passar do estágio de construção para o de ruína
Se tivesse havido consciência do valor estético (e não só estético) da estrutura urbanística e arquitetônica de Salvador na altura em que Welles viu a cidade — ou quando eu vim de Santo Amaro — e tivéssemos podido planejar a modernização mantendo-a (o que não é nada impossível: as cidades europeias são ao mesmo tempo mil vezes mais modernas e mil vezes mais preservadas do que as nossas), teríamos hoje uma joia do Atlântico Sul, em lugar do caos que vemos. Seria preciso termos tido uma história muito diferente. O que excita é a esperança inacreditavelmente renovada de que, apesar de tudo, ainda vai dar para fazer alguma coisa. E a certeza maluca de que se fizermos será algo grandioso, como a entrada no Reino do Espírito Santo. Digo que a esperança se renova inacreditavelmente e que a certeza é maluca porque o olhar realista para a feiura visual e social produz ceticismo. Sem o qual, é verdade, nada faremos. Mas na maior parte das vezes ele nos deixa imobilizados.
Mais do que quase nunca, estou sentindo aquele antigo bem de estar na Bahia que reencontro tão puro em meu filho Moreno. É uma gratidão infinita por simplesmente estarmos aqui. A brisa, as cores, a luz confirmam. Mas o sentimento independe de demonstrações óbvias por parte do lugar. No meio do ano passado, eu estava indo com Moreno da parte do Rio Vermelho onde ele tem apartamento para a parte do Rio Vermelho onde tenho uma casa. Era noite, fazíamos um retorno na Avenida Garibaldi — onde não há senão construções modernas sem elegância nem imaginação — e chovia sem parar. Comentei minha constatação de que a cidade estava totalmente desprovida de encantos. Moreno respondeu apenas “Eu adoro”. E falou com tanta alegria sincera que, agora que tento explicar o que sinto estando aqui, só a cara dele nesse momento vem à minha mente.
Hélio Eichbauer, ouvindo-me lamentar as fachadas novas e tolas que as pessoas ergueram para substituir as frentes antigas das casas no estreito caminho que as separa do mar entre o Bogari e o Bonfim (destruição arquitetônica que eu comparava à sofrida por Santo Amaro), disse apenas “Eu gosto”. Entendi bem. Cidades americanas não podem ser europeias. San Juan de Porto Rico me deu a sensação de um Projac mantido pelos Estados Unidos. Lá, achei que a tragédia cubana, que separa famílias entre Miami e Havana, era o oposto da melancolia porto-riquenha. Décio Pignatari e Candice Bergman acharam o Pelourinho recém-restaurado “uma disneylândia”. Discordei. Mas entendo o que diziam. Um casal amigo, nascido e criado cá, foi assaltado na saída do Cine Glauber Rocha. A violência urbana cresceu aqui mais do que no resto do país. O racismo antigo está quase intacto (e mesmo renovado). Mas meu sonho não acabou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário