Paulo Ormindo de Azevedo*
Quando meus netos tinham três ou quatro anos, um deles ganhou de aniversário um inocente carrinho e começou a empurrá-lo no chão. De repente tomou um susto e começou a chorar, o carrinho virou um androide intergaláctico misto de homem e máquina. Não queria aquele robot desengonçado, queria o carrinho. Meu filho tentava fazer o transformer voltar a carrinho, mas não conseguia. Só um primo adolescente viciado em seriados noir conseguiu, mas o carrinho já não rodava, e a criança não parava de chorar, queria o brinquedo.
Uma amiga minha que conheceu Salvador nos anos 70, em visita recente à cidade, não mais a reconheceu. A bucólica Estrada da Rainha vivou um terrapleno com passarelas altíssimas com formiguinhas tentando escalá-la para chegar ao outro lado da rua. O canteiro central arborizado da Av. Paralela virou estrada de ferro com obscenas estações de metrô, que o colega Fernando Peixoto demonstrou com fotos de drone que são tatus em suruba.
As avenidas em memória de Orlando Gomes e ACM, o original, viraram subsolos de viadutos sem passeios nem ciclovias, um deles com direito a pilar no meio da pista e outro em forma de tobogã que atropelou dolosamente árvores frondosas e o homenageado. Salvador havia virado uma transformer city e não consegue mais voltar a ser a cidade que era, humana e bela.
Carlos Alberto Ferreira Braga, o grande Braguinha, que estudou arquitetura e amava a paisagem carioca e a boa arquitetura, a ponto de assumir o pseudônimo de João de Barro, autor do monumental samba-canção Copacabana, de 1947, interpretado com bossa por Dick Farney, também lamentava a transfiguração da bela avenida carioca em uma floresta de espigões cinza, sem brilho.
“Copacabana, princesinha do mar/ Pelas manhãs tu és a vida a cantar/ E à tardinha, ao sol poente/ Deixas sempre uma saudade na gente/ Copacabana, o mar eterno cantor/ Ao te beijar, ficou perdido de amor/ E hoje vive a murmurar/ Só a ti Copacabana eu hei de amar.” Podemos dizer o mesmo da Baía de Todos os Santos, que com suas belas praias ornamenta Salvador e o nosso Recôncavo.
Braguinha, pouco antes de morrer em 2021, entrevistado por uma TV sobre como ele via Copacabana depois dos 74 anos do seu hino famoso, ele disse: “De um lado está tudo igual, o mar e a paisagem marinha, do outro é irreconhecível, uma merda”.
Nem o consolo da bela paisagem da Bahia de Todos os Santos nós teremos, se for chocado o ovo da terrível sucuri, ou anaconda de concreto, que pode matar por garrote e engolir a indefesa Ilha de Itaparica, cantada por João Ubaldo Ribeiro e a poeta maior do Mar Grande, Myriam Fraga.
Ainda bem que os chineses e Lula, do projeto PAC-Ba, sabem que esta ponte de week end é ociosa e impagável e não querem jogar dinheiro fora.
* Arquiteto e Professor Titular da Ufba.
** Artigo publicado no jornal ATarde de 20/08/2023