Das coincidências da vida, comprei o livro O Labirinto da Solidão, de Octavio Paz, por indicação de Wilson Gomes, e deparei-me com um capítulo que caiu como uma luva para o que queria dizer, na atual conjuntura.
O livro é um belo estudo sobre o México e seu povo, e no terceiro capítulo, que trata do espírito festeiro do mexicano, uma frase saltou-me aos olhos: “Nossa pobreza pode muito bem ser medida pelo número e pela suntuosidade das festas populares”. E completa: “Os países ricos têm poucas [...] e não são necessárias; as pessoas têm outras coisas para fazer e quando se divertem o fazem em pequenos grupos”. E, logo adiante, cita o teatro dentre estes afazeres.
A reflexão sobre a quantidade de dinheiro gasto, em meio à pobreza, para pouquíssimas, esparsas e gigantes festas, como desafogo e extravasamento pessoal frente ao cotidiano, na análise de Paz, vai ao encontro do que similarmente acontece no Brasil e, notadamente, em Salvador. Principalmente no Carnaval.
Arte e cultura transformam o cidadão. Dão a ele capacidade de visão crítica, diferenciada, distanciada ou intensa da vida, dos amores, políticas, guerras, além de estimular a fantasia e ser um descanso do concreto e cinza repetitivo da vida cotidiana. Quanto mais acesso a diferentes culturas e artes, mais o repertório subjetivo e intelectual do ser humano se sofistica e se amplia.
Amo carnaval e sei de sua importância cultural, econômica, e a quantidade de gente que espera esse período para lucrar, sejam ambulantes, artistas, equipe técnica ou rede hoteleira. Mas mesmo essa espera reflete a falta de uma política continuada.
Os 5, 7 dias de festa, no carnaval, fazem a economia girar num curto período e para poucos. Os turistas não andam pela cidade consumindo em comércios, restaurantes, espaços culturais.
Uma cidade com programação cultural forte e intensa o ano inteiro traz outro impacto. A cadeia produtiva de um espetáculo teatral, por exemplo, vai do elenco, passando por equipe técnica e artística, até funcionários do teatro, costureira, motorista, carpinteiro, copista, ambulantes, serralheiros. São dezenas de pessoas empregadas em função de apenas uma peça. Quem vai ao teatro, sai depois para um restaurante, bar. Compra roupa para a estreia. A produção compra tecido, madeira, sapato, ferro. O dinheiro gira por toda cadeia.
Incentivar uma programação artística e cultural forte é estimular a economia, diminuir desemprego, desigualdade, e enriquecer a cidade com um atrativo que dure 365 dias, trazendo uma maior circulação de visitantes interessados pela riqueza de opções que a cidade tem, de museus a espetáculos, de concertos a música popular.
A discussão atual, sobre a retomada do carnaval, é, antes de tudo, preocupante pela possibilidade de circulação de muitas pessoas de muitos países, que não estarão de máscara e álcool gel atrás do trio elétrico com distanciamento. Mas é, também, uma demonstração clara da falta de visão de nossos governantes que, em vez de estarem preocupados com toda uma economia criativa, que ao longo do ano pode voltar a movimentar a cidade trazer melhor qualidade de vida a seus cidadãos, insistem na pauta única (mas também importante) do carnaval. Salvador vive o estigma de ser um eterno balneário, para beijar na boca, mijar na rua e beber todas num curto período de histeria coletiva. Que não seja, também, um foco disseminador de um vírus que, em meio a negacionistas, está distante de ser controlado em todo o planeta.
*Gil Vicente Tavares é diretor, dramaturgo, compositor e professor da Escola de Teatro da UFBA. Doutor em artes cênicas, teve sua tese publicada pela EDUFBA com o título a Herança do Absurdo
terça-feira, 23 de novembro de 2021
sexta-feira, 19 de novembro de 2021
Privatização das Companhias Docas Enfrenta Resistências
A privatização dos serviços nos portos brasileiros e os arrendamentos de áreas e equipamentos ja foram feitos desde a promulgação da LEI 8.630. As Companhias Docas, desde então,atuam como Autoridades Portuarias, fiscalizando a ação dos Operadores Privados e promovendo o arrendamento de áreas e instalações. Esse é o modelo vigente em quase todos os paises,sendo que, na Europa, a maioria das Autoridades Portuarias são municipais. Para o consultor Frederico Bussinger, ex-diretor da Codesp e ex-presidente do Porto de São Sebastião, as privatizações de companhias docas são ruins para o ecossistema portuário e contrariam as boas práticas internacionais. "O benchmark aponta em outra direção. Autoridade portuária não é ativo. É uma função, que precisa equilibrar potenciais conflitos de interesses", afirma. Bussinger acrescenta que as administrações de portos nos EUA, na Europa e na Ásia continuam nas mãos do Estado. Na Austrália, experiência que costuma ser citada como modelo de gestão desestatizada, tem havido problemas, segundo o consultor. Ele acredita que as atividades de carregamento e descarregamento de cargas ("o mais importante"), como açúcar e contêineres, tiveram aumento considerável de eficiência desde os anos 1990 e já equivalem às melhores performances globais. Como alternativa à privatização, o prefeito de São Sebastião, Felipe Augusto (PSDB), mandou ofício ao Ministério da Infraestrutura, no dia 20 de outubro, pedindo a abertura de conversas sobre uma eventual municipalização do porto - sem dispensar o arrendamento de áreas internas e terminais ao setor privado. Em Itajaí, o porto foi delegado para o município até o fim de 2022. O prefeito Volnei Morastoni (MDB) também encaminhou uma carta ao ministro Tarcísio Freitas, na semana passada, pleiteando estender essa delegação por 25 anos. Ele teme desordenamento urbano com a perspectiva de triplicação da área do porto sob a iniciativa privada. Em Salvador, uma alternativa seria a municipalização da Autoridade Portuaria e maior participação da comunidade local, como ocorre em Itajaí e portos europeus a exemplo de Antuerpia, Hamburgo e Rotterdan. Para articular o movimento contrário à privatização, foi criado neste ano o Fórum Permanente de Defesa Portuária, com a participação de empresas e sindicatos trabalhistas. A frente prioritária é a mobilização contra a venda da Codesa - alienação do controle acionário da estatal e concessão da autoridade portuária simultaneamente -, que abriria caminho para as privatizações seguintes. Guilherme Lacerda, ex-diretor do BNDES e integrante do fórum, diz que os estudos estão "eivados de questões nebulosas" e garante que o movimento contra a privatização não tem caráter ideológico. Ele defende como alternativas a abertura de capital da Codesa (com uso dos recursos levantados para obras de modernização) ou a criação de um condomínio (com os operadores de terminais) para administrar o porto. "Não deveríamos ficar acomodados, não se trata disso, mas o modelo proposto levará à oligopolização da atividade portuária", afirma Lacerda. Fonte: com informações do Valor Econômico
quinta-feira, 18 de novembro de 2021
Gatos, Ratos e o Arquivo Público
Nelson Cadena*
Quando o presidente eleito da República Washington Luiz visitou Salvador, em meados de agosto de 1926, após o régio almoço oferecido pelo governador Góes Calmon, no Palácio da Aclamação, apreciou a exposição de documentos do Arquivo Público, mostruário preparado especialmente para ele com destaque para originais autógrafos de personalidades. O Presidente foi informado da relevância do acervo da instituição, o segundo arquivo mais importante do país, depositário de preciosidades documentais do Brasil-Colônia, do Império, bandeiras, mapas, plantas, retratos, periódicos. Na oportunidade, Afrânio Peixoto ofertou ao Arquivo a “Ode aos Bahianos” do Patriarca da Independência, José Bonifácio, autografado pelo autor.
O que Washington Luiz não ficou sabendo é que a rica documentação do arquivo tinha sido preservada graças aos gatos que afugentaram os ratos dos matos da colina da Praça Thomé de Souza, especificamente do Palácio Rio Branco onde por séculos foram acumulados num quarto do térreo, úmido e cimentado, documentos da história de nossa cidade, conforme contou o ex-governador Francisco Vicente Vianna, primeiro diretor do estabelecimento: “cômoda morada e sossegado ninho dos gatos de toda a vizinhança”.
Os gatos contribuíram para preservar os mais de 465 mil documentos acumulados e mais de um milhar de livros manuscritos, já encadernados, na “repartição”, ou depósito, sendo menos generoso com as palavras, que formaram o acervo inicial da instituição, inaugurada em 1890, com sede no Edifício da Escola de Belas Artes, na Rua 28 de Setembro. Parte do acervo já tinha sido transferido para a Biblioteca e Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. Outros documentos tinham sido emprestados __ e não voltaram__ para estudos que contribuíram com a historiografia baiana e brasileira, a Inácio Accioly, Mello Moraes, Gonçalves Dias, Valle Cabral, dentre outros.
Por décadas o nosso Arquivo Público viveu de favor, em imóveis emprestados, a mesma sina da Biblioteca Pública que viveu em puxadinhos durante 107 anos (1812-1919) até ter uma sede para chamar de sua. O Arquivo foi instalado em cômodos da Escola de Bellas Artes, anos depois transferido para acanhadas salas num prédio da Rua do Tesouro; em 1919 obteve mais espaço com a locação na Rua Carlos Gomes do prédio da Associação dos Empregados do Comércio da Bahia, de mudança para a Rua Chile, no hoje chamado Palacete do Tira Chapéu, em reforma.
Em 1942, o Arquivo mudou-se, na mesma Rua Carlos Gomes, para um edifício de esquina, onde permaneceu até 1980 quando transferido para a Baixa de Quintas, no imóvel de retiro do Padre Vieira, antiga Casa de Oração dos Jesuítas. Reformada e adequada para funcionar como leprosário, em 1787, e logo mais para isolamento de doentes de febre amarela, varíola e beribéri.
É o imóvel tombado pelo IPHAN, em 1949, mais pelo seu valor histórico do que arquitetônico, que a Bahiatursa ofereceu em 2005 como garantia em ação ajuizada por um escritório de arquitetura há mais de três décadas. Não tinha outro patrimônio a oferecer?
E aqui estamos, testemunhando a insanidade do Arquivo Público ameaçado de despejo por imprudência, burrice, ou má fé de quem alocou o imóvel como garantia de dívida e desleixo de quem deixou o barco correr. O juiz do processo determinou a transferência do valiosíssimo acervo de 40 milhões de documentos em dois meses; serão necessários, no mínimo dois anos e isso qualquer tribunal superior deve garantir. A ameaça que paira no ar não é sobre o bem tombado, nem sobre o acervo, é sobre o bom senso que, se não restabelecido, abre precedentes para o vale tudo. (Nelson Cadena).
*Pesquisador e jornalista
Artigo publicado hoje no Correio*
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