Antonio Paim*
Político consagrado na República Velha, João Mangabeira evoluiu na direção do
socialismo democrático. Muito ligado a Rui Barbosa, seria marcado pela ênfase
que Rui passou a atribuir à questão social. Até mais ou menos a época do Estado
Novo, contudo, essa adesão correspondia a uma espécie de desdobramento de
postura humanista. A experiência dos anos 1930 e do Estado Novo é que iria
despertá-lo para a necessidade de ser estruturada no País uma alternativa
socialista de cunho nitidamente democrático, dado o fato de que essa corrente
assumira, sobretudo em decorrência da ascensão de Getúlio Vargas, feição
francamente autoritária. Baiano de nascimento, jurista e advogado de certo
prestígio, começou a envolver-se na política – sem afastar-se do exercício da
advocacia –, em 1906, quando completou 26 anos. Em 1909 começou uma atribulada
carreira como deputado federal. Nas duas décadas seguintes envolveu-se em todas
as principais questões típicas da República Velha, notadamente a praxe do
reconhecimento (e a degola) de mandatos; as duas campanhas de Rui Barbosa à
presidência; o envolvimento do País na Primeira Guerra Mundial; a situação de
permanentes estados de sítio que o País vivenciou nos anos 1920; a Reforma
Constitucional de 1926 etc. Assim, quando eclodiu a Revolução de 1930, era um
nome consagrado no cenário político nacional, além de jurista de reconhecida
competência. Devido a isto, participou da famosa Comissão do Itamaraty, a qual
foi atribuída a missão de elaborar o projeto de Constituição que seria tomado
como referência pela Assembleia Constituinte de 1934. Mangabeira elegeu-se para
a Constituinte e passou a integrar a Câmara dos Deputados após promulgada a
Constituição. Seguiram-se anos de extrema polarização no País, com choques de
rua entre comunistas e integralistas, processo que culminaria com a insurreição
de novembro de 1935, promovida pelos comunistas em quartéis da Capital da
República e de alguns Estados, rapidamente esmagada. Serviu de pretexto para a
decretação do Estado de Guerra, que suspendia as garantias constitucionais.
Vargas iria valer-se dessa prerrogativa para prender os parlamentares que se
destacavam como seus oposicionistas, entre estes João Mangabeira. Introduziu-se
tribunal de exceção (Tribunal de Segurança Nacional) que condenou os
parlamentares a variadas penas, sob a alegação de que seriam uma espécie de
ponta de lança dos comunistas. Mangabeira foi condenado a três anos. O tribunal
militar reduziu-lhe a pena. Ao todo ficou preso de março de 1936 a junho de
1937. Retornou à Câmara que, entretanto, foi fechada logo adiante pelo golpe de
Estado de novembro, que instituiu o Estado Novo. Na fase de redemocratização do
País constituiu, com outros intelectuais, a Esquerda Democrática, que iria fazer
parte da União Democrática Nacional. Esse acordo terminou logo depois das
eleições (dezembro, 1945). Em agosto de 1946, a Esquerda Democrática
transformou-se no Partido Socialista Brasileiro (PSB). O programa do PSB foi
escrito por um notável grupo de intelectuais, entre os quais sobressaíam João
Mangabeira, escolhido presidente da nova agremiação, e Hermes Lima (1902-1978),
eleito representante do PSB à Assembleia Constituinte de 1946. Mangabeira
conquistaria mandato somente na eleição complementar realizada após a
promulgação da Constituição, em 1947. O programa do PSB reiterava, sempre que
oportuno, seu inequívoco compromisso com o sistema democrático-representativo.
Antes de mais nada, deixava claro que a aplicação dos princípios que preconizava
não se constituiria “em solução de continuidade na história política do País,
nem violência aos caracteres culturais do povo brasileiro”. Desse modo, rompeu
frontalmente com a tradição, emergente nos anos 1930, de “passar o País a
limpo”, “inaugurar os novos tempos” e outras tiradas messiânicas desse tipo. O
programa expressava a intenção de preservar a federação brasileira e a autonomia
municipal. Todas as principais características da organização democrática do
Estado são claramente referidas. O PSB incorporou, como “patrimônio inalienável
da humanidade”, as conquistas democrático-liberais, embora as considerasse
insuficientes para alcançar a almejada eliminação do sistema econômico que se
baseia na “exploração do homem pelo homem”. Se chegasse a alcançar o poder, o
PSB preservaria a liberdade de organização partidária. As transformações que
almejava introduzir na estrutura econômica do País também são apresentadas de
forma equilibrada. Assim, preconizando a “gradual e progressiva socialização dos
meios de produção”, entende que somente deverão ser realizadas na medida em que
as próprias condições do País o exijam. Ainda mais: a mencionada socialização
não era identificada com a posse estatal, não poderia ser efetivada ao arrepio
do Parlamento nem excluía a circunstância de que pudessem ser preferidas
organizações cooperativas. Tampouco se cogitava da completa eliminação da
propriedade privada. O documento evitou a expressão “luta de classes”, dando
preferência a “antagonismo de classe”. Finalmente, o PSB não se identificava com
nenhuma concepção filosófica nem circunscrevia-se à defesa de determinado grupo
social, dizendo-se comprometido com todos que vivem do próprio trabalho. O PSB
viria a ser a primeira agremiação no País, de índole socialista, de fato
comprometida com o sistema democrático representativo, já que a expressão
predominante dessa corrente, desde os anos 1930, revestiu-se de caráter
nitidamente autoritário, sobretudo por se achar associada ao varguismo. Ao que
parece, contudo, não encontrou ambiente favorável ao seu florescimento. No ciclo
do interregno democrático, nunca conseguiu uma representação digna de nota no
Parlamento. Como foi referido, Mangabeira seria deputado na primeira legislatura
após concluídos os trabalhos da Assembleia Constituinte. Acentuando-se as
divergências com a UDN, sobretudo por sua insistência com candidatura militar à
presidência, nas eleições de outubro de 1950 concorreu com chapa própria, sendo
candidato o próprio Mangabeira. Nessa eleição, Vargas obteve cerca de quatro
milhões de votos, enquanto João Mangabeira menos de 10 mil (ao todo, 9.466), o
que dá bem uma ideia da pouca expressão alcançada pelo PSB. Sob o
parlamentarismo, ocupou a pasta da Justiça. Após a reintrodução do
presidencialismo, optou por deixar a função, apesar da intenção de Goulart de
mantê-lo no posto. Desde então, afastou-se da política, vindo a falecer menos de
um mês após o movimento de 31 de março de 1964, em 27 de abril, pouco antes de
completar 84 anos. A ideia de um socialismo comprometido, antes de mais nada,
com o funcionamento das instituições mantenedoras da democracia não prosperou. O
PSB que se reconstituiu nos dois períodos chamados de reconstituição democrática
(1945-1964 e o pós-1985) perdeu a singularidade do socialismo democrático antes
caracterizado, afeiçoando-se às agremiações que se tornaram a feição típica,
como se mostra nas breves indicações adiante O Partido Socialista Brasileiro foi
reorganizado em 1985. No período inicial, foi apropriado por um grupo que optou
por transformá-lo numa agremiação de tipo marxista-leninista. A documentação
resultante dessa fase foi examinada por Antonio Paim no livro O socialismo
brasileiro-1979-1999, editado pelo Instituto Teotônio Vilela. A conclusão do
autor é transcrita adiante. A análise precedente e os documentos que a instruem
evidenciam que, nos três lustros iniciais, a tentativa de renascimento do PSB
fez-se em flagrante contradição com o legado dos fundadores da agremiação em
1947. Os que assumiram tal responsabilidade, mesmo sendo socialistas, a tanto
não estavam obrigados. Podiam simplesmente iniciar uma nova experiência, como
fizeram os fundadores do PT. Se preferiram identificar-se com o PSB – e até
adotaram o mesmo programa –, o que se poderia exigir é que revelassem um mínimo
de conhecimento de causa. Ao contrário, o empenho foi dirigido no sentido de
estruturar uma organização do tipo stalinista. Nunca causou qualquer
constrangimento ao PSB suas alianças públicas com o PC do B, que corresponde
precisamente ao absoluto contrário de todos os princípios que norteiam o
socialismo democrático. E, mesmo depois da aprovação das novas diretrizes, no
Congresso do Cinqüentenário (novembro, 1997) – que revogam a linha até então
seguida e dizem expressamente que o PSB não é uma agremiação de classe –, após
as eleições de 1998, o PSB formou um bloco com o PC do B na Câmara dos
Deputados. No livro de memórias que nos deixou (Travessia, Rio de Janeiro,
1974), Hermes Lima fixou com exatidão o problema enfrentado pela Esquerda
Democrática, ao desligar-se da UDN e dar nascedouro ao PSB: distinguir-se tanto
dos liberais (UDN) como dos comunistas (PCB). Logo adiante, devido ao clima de
histeria anticomunista que se instaurou no País após as eleições presidenciais,
de que saiu vitorioso o general Eurico Gaspar Dutra – fechamento do PC; cassação
de mandatos dos representantes comunistas; empastelamento de jornais e grande
número de prisões – o PSB, já então constituído, tratou de fixar a sua posição
independente, sem fazer concessões à falta de liberdades na União Soviética, mas
defendendo firmemente o Estado Liberal de Direito em face das sucessivas
violações às liberdades fundamentais presenciadas no País. Apesar da
complexidade da situação, a impressão que se recolhe da documentação existente é
que aquela liderança soube orientar-se adequadamente. Nesse particular, tudo
indica que a questão central corresponde à capacidade de distinguir-se do
comunismo, tratando-se de agremiação que, a partir mesmo do seu nascedouro,
identificou-se com o socialismo democrático ocidental. Subsidiariamente, teria
de acompanhar a evolução do socialismo na Europa Ocidental. Na verdade, entre as
maiores agremiações socialistas do continente, somente o PS francês mantém-se
fiel à bandeira socialista. As demais fizeram uma franca opção social-democrata,
isto é, renúncia à utopia da sociedade sem classes e ao entendimento de que o
socialismo deveria traduzir-se em estatização da economia. Em 1993, assumiu a
presidência do PSB um tradicional líder da esquerda, Miguel Arraes (1916-2005),
governador de Pernambuco cassado pelos militares e que, após 1985, voltaria a
ocupar aquele cargo. Abandonou o projeto anterior, mas acabaria contribuindo
para desfigurar totalmente a agremiação, ao aceitar, em 2002, o ingresso no
partido de Anthony Garotinho, que ocupara o cargo de governador do Rio de
Janeiro. Esse fato determinou o afastamento de Roberto Saturnino, então senador,
que representava justamente a melhor tradição do socialismo democrático. Desde
então, o PSB tornou-se progressivamente uma agremiação sem nítida feição
própria, engolfada pela geleia geral que passou a representar a base de apoio
dos governos subsequentes.
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