quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Há 122 anos a primeira rua do Brasil, preserva a memória e revitaliza o centro de Salvador


Alan Alves*
Há exatos 115 anos, a primeira rua a ser fundada no Brasil, na cidade de Salvador, era batizada de "Rua Chile". Porta de entrada para o Centro Histórico da capital baiana, a via de cerca de 400 metros ficou marcada na história como palco do comércio elitista até meados da década de 70 do século passado. Hoje, após o processo de descentralização da área comercial da cidade e a decadência da região, a iniciativa privada e o poder público tentam resgatar o espaço como atrativo turístico e até mesmo reacender o glamour dos tempos áureos.

Um dos símbolos da rua, o Palace Hotel, inspirado no Flatiron Building de Nova York, foi reaberto há três meses após ser totalmente reformulado. Foi um dos cenários do romance "Dona Flor e Seus Dois Maridos", obra do escritor Jorge Amado. Era no luxuoso hotel que Vadinho, o primeiro marido de Dona Flor, costumava passar as noites jogando no cassino que funciou no local até 1946 - o espaço foi fechado após a proibição dos jogos de azar no Brasil.

Era no Palace, empreendimento que ocupa um quarteirão inteiro e que divide a Rua Chile com as ruas do Tesouro e a da Ajuda, que "as senhoras da Graça e da Barra exibiam os últimos modelos e algumas delas, as mais evoluídas, num requinte de desenvoltura, arriscavam fichas na roleta", como escreveu Jorge Amado. A ficção retrata o que foi a realidade.

Rua Chile, em Salvador — Foto: Alan Tiago Alves/G1
Rua Chile, em Salvador — Foto: Alan Tiago Alves/G1 
Antes de ser batizada de Chile, a rua onde fica o Palace já teve outros oito nomes. Virou, recentemente, protagonista do quinto livro escrito pela jornalista Gabriela Rossi. Na obra, intitulada "Rua Chile: honra e glória do comércio baiano", lançada no dia 28 de junho como parte das comemorações pelos 70 anos da Federação do Comércio da Bahia (Fecomércio-BA), a escritora conta a história do local, desde a sua origem em 1549, mesma data de fundação da capital da Bahia, até a tentativa hoje de revitalização do local. Do início do levantamento de informações até a publicação do livro, foram oito meses. A escritora se baseou em informações que colheu em jornais antigos, teses de mestrado e doutorado. Diz que o que mais a chamou a sua atenção durante o trabalho foi a prosperidade que a Bahia viveu no auge da Rua Chile. "A Bahia de outrora tinha um charme e um comércio próspero. Os costumes da época, o passeio de bonde, a cultura do estar na rua ao ar livre, diferente de hoje, que vivemos a cultura do shopping center. A rua, debruçada para a Baía de Todos-os-Santos, era símbolo da efervescência política e cultural", destacou.
Dos tempos áureos ao 'esvaziamento
'A professora de história da Universidade Estadual da Bahia (Uneb), Neivalda Freitas de Oliveira, que pesquisou a história da Rua Chile para o seu doutorado, diz que o traçado da rua que depois seria chamada pelo nome de Chile já estava desenhado na planta de fundação da cidade. A planta já estava pronta antes mesmo de os portugueses desembarcarem no Brasil. Segundo Neivalda, os portugueses já tinham plantas de como eles queriam que as cidades fossem e, ao chegarem em novas terras, eles aplicavam essas plantas. "Aportaram no Porto da Barra, mas acreditavam que ali era muito vulnerável ao ataque de inimigos. Escolheram, então, a parte alta da cidade, onde tinham uma visão panorâmica. Ali fundaram a cidade e foi ali onde nasceu a primeira rua, primeiro núcleo urbano", destaca. O primeiro nome da via foi Rua Direita de Santa Luzia. Essa e as demais nomenclaturas que a rua teve sempre se basearam em acontecimentos políticos ou econômicos da época, como lembra Gabriela Rossi. "O primeiro nome foi dado porque a cidade era murada e tinha duas portas, sendo uma delas a porta de Santa Luzia. Como ficava próximo, a rua ganhou esse nome. Conforme a cidade foi crescendo, ali virou o centro do governo, centro político do Brasil colonial. E o comércio foi se desenvolvendo no local, com a instalação de hotéis, lanchonetes, sorveteria, farmácia e lojas com muitos produtos importados. Com isso, a rua ganhou seu segundo nome: Rua Direita dos Mercadores, pela vocação comercial. Depois, na época do Império, também ganhou o nome de Rua Direita do Palácio, porque ali ficava a sede do governo", destaca a escritora.
Rua Chile, em Salvador, foi a primeira rua do Brasil — Foto: Reprodução/TV Bahia
Rua Chile, em Salvador, foi a primeira rua do Brasil — Foto: Reprodução/TV Bahia 
O nome de Rua Chile, conforme a historiadora Neivalda Freitas, veio somente em julho de 1902, uma homenagem do governo baiano a membros da esquadra chilena que estavam de passagem pelo Brasil por conta da morte de embaixadores do país após uma epidemia de peste bubônica. "O Rio de Janeiro era conhecido na época como o "cemitério dos estrangeiros", por conta das muitas epidemias. A embaixada chilena foi dizimada, e a esquadra do país, que estava participando da coroação do rei, passa no Brasil para buscar os caixões dos conterrâneos", conta. 

A escritora Gabriela Rossi diz que foi em função desse acontecimento trágico que a Câmara sancionou uma lei de reparação perante o Chile. A historiadora Neivalda Freitas, por sua vez, afirma que foi também uma forma encontrada pela Bahia para "se aparecer". "A Bahia, na época, não tinha tanta importância política e econômica e a recepção aos chilenos com festa foi também uma forma de se colocar como um lugar de destaque, de aparecer politicamente diante de um país que tinha a melhor esquadra, que foi o primeiro da América Latina a se urbanizar, que fazia os melhores negócios e que era o mais organizado politicamente. Foi mais de uma semana de festa", diz.

Em 1912, na época do governo de José Joaquim Seabra, 10 anos depois de ganhar o nome de Chile, a rua passou por uma reforma. Foi feito alargamento da rua e ela foi estendida até a Praça Castro Alves. Para isso, houve derrubada de prédios e até de uma igreja.


Rua Chile, em Salvador, foi fundada em 1549 — Foto: Reprodução/TV Bahia 

"Sempre foi uma rua de experimentos urbanos. Foi lá que teve a primeira linha de bonde, a primeira escada rolante, os primeiros postes de iluminação a gás, o primeiro hotel, que foi o Hotel Chile. Por isso, sempre atraiu a atividade comercial. Era um lugar do comércio de produtos mais finos, e não de produtos populares. Quem queria algo mais popular tinha que ir para a Baixa dos Sapateiros", destaca Neivalda.


No auge do comércio, a rua ditava moda, como lembra também a escritora Gabriela Rossi. A partir do final dos anos 70, no entanto, a rua foi perdendo força, sobretudo com a expansão urbana e migração do comércio mais para a região norte da cidade. "O comércio começou a ganhar força na região do Iguatemi, após a construção do shopping, e para a Avenida Tancredo Neves, que virou um novo corredor de lojas. Além disso, o governo foi transferido para o CAB [Centro Administrativo da Bahia]. Houve, assim, um esvaziamento e declínio da Rua Chile, já que a vida comercial da cidade caminhou para o outro lado", diz a escritora.

* Jornalista